Gawain e Lady Ragnell: a liberdade da fala e do corpo feminino

GAWAIN  E  LADY  RAGNELL

por Polly Young-Eisendrat

 

O QUE É QUE AS MULHERES REALMENTE QUEREM?

A pergunta O que é que as mulheres realmente querem? é normalmente atribuída a Sigmund Freud, mas pelo que eu sei apareceu formalmente pela primeira vez numa história medieval intitulada “O casamento de Sir Gawain e Lady Ragnell”, cuja versão mais antiga data do século XIII. Sua origem, provavelmente, é anterior a esta versão, porque elementos de seu enredo e de seu tema aparecem em outras histórias populares e na literatura da Inglaterra (como “The Wife of Bath’s Tale”, do Contos de Canterbury de Chaucer) e em toda a Europa, indicando que ela já era amplamente conhecida por volta do século XIII ou XIV. Desde então, ela foi contada e recontada de muitas formas por todo o mundo.

A versão a seguir está mais próxima da versão moderna publicada em The Maid of the North: Feminist Folk Tales from Around the World (A moça do norte: histórias feministas populares do mundo inteiro), organizada por Ethel Johnston Phelps. Phelps selecionou histórias em que as personagens femininas, especialmente as heroínas, contrastam com aquelas dos contos de fadas e histórias populares tradicionais que são normalmente contadas para as crianças. Por um lado, as heroínas das nossas histórias infantis mais populares, como Cinderela e A bela adormecida, são conhecidas principalmente por sua beleza, graça ou generosidade — e por sua submissão ao Príncipe Encantado. As histórias escolhidas por Phelps, por outro lado, retratam as mulheres como pessoas fortes, capazes e inventivas, bem como esforçadas e resolutas.

Um dia, o rei Artur estava caçando um grande veado branco nas cercanias do bosque de carvalhos quando ergueu os olhos e se viu confrontado por um chefe guerreiro alto e forte, brandindo a espada e dando a impressão de que ia abater o rei ali mesmo.

Este homem era Groiner, que disse estar querendo vingar-se pela perda de parte de suas terras ao norte para Artur.

Como Artur estava desarmado, Sir Gromer demonstrou compaixão e deu ao rei uma chance de salvar sua vida.

Gromer lançou um desafio: o rei tinha um ano para voltar desarmado àquele lugar com a resposta para a pergunta:

O que as mulheres desejam acima de tudo?

Se Artur respondesse à pergunta corretamente, sua vida seria poupada; caso contrário, sua cabeça seria cortada.

Artur concordou, mas se sentiu muito desanimado. Aquela pergunta devia ser um enigma, ele pensou. Ele sabia que ninguém saberia a resposta. De volta ao castelo, Artur contou toda a história a seu sobrinho, Sir Gawain, que era considerado o mais sábio, o mais corajoso, o mais misericordioso e o mais educado de todos os Cavaleiros da Távola Redonda. O jovem cavaleiro, ao contrário do rei, mostrou-se esperançoso. Ele e Artur tinham um ano para percorrer o reino e ele tinha certeza de que encontrariam a resposta certa.

Quase um ano se passou e Artur e Gawain reuniram muitas respostas, mas nenhuma soava verdadeira. O dia marcado estava se aproximando, e numa manhã Artur saiu cavalgando sozinho no meio das urzes roxas e dos tojos dourados, totalmente absorto em seus problemas. Ao aproximar-se do bosque de carvalhos, viu-se subitamente diante de uma mulher grande e grotesca, coberta de verrugas e quase tão larga quanto alta.

Os olhos dela o contemplaram destemidamente e ela declarou:

—  O senhor é Artur, o rei, e dentro de dois dias terá que se encontrar com Sir Gromer com uma resposta para uma pergunta.

—  É verdade — respondeu Artur hesitante —, mas como é que sabe disso?

—  Eu sou Lady Ragnell e Sir Gromer é meu meio-irmão. O senhor não sabe a resposta certa, sabe?

— Tenho muitas respostas, e não sei o que a senhora tem a ver com isto — respondeu Artur, puxando as rédeas para se virar e voltar para casa.

— O senhor não sabe a resposta certa — disse Ragnell com uma confiança que deixou Artur desanimado. — Eu tenho a resposta.

Artur virou-se e saltou do cavalo.

— Diga-me a resposta e eu lhe darei um saco cheio de ouro.

— Não preciso de seu ouro – respondeu Ragnell calmamente.

—  Bobagem, mulher, você poderá comprar o que quiser com ele! O que você quer, então? Jóias? Terras? O que quiser eu pagarei. Isto é, se você souber a resposta certa.

— Eu sei a resposta. Isto eu posso garantir — respondeu Ragnell. Após uma pequena pausa, ela acrescentou: — Em troca, exijo que Sir Gawain se torne meu marido.

Artur abriu a boca de espanto.

— Impossível! — gritou. — Você pede o impossível, mulher. Eu não posso dar-lhe o meu sobrinho. Ele é dono de si mesmo, não pertence a mim para que eu o dê.

— Eu não pedi ao senhor que me desse o cavaleiro Gawain. Se Gawain concordar em se casar comigo por livre e espontânea vontade, então eu lhe direi a resposta. São estas as minhas condições.

— Condições! Que direito você tem de estabelecer condições para mim? É impossível! Eu jamais poderia apresentar esta proposta para ele.

Ragnell ficou olhando calmamente para o rei e disse apenas:

— Se mudar de ideia, estarei aqui amanhã. — E desapareceu no bosque.

Abalado com aquele estranho encontro, Artur cavalgou lentamente de volta para casa pensando consigo mesmo que jamais poderia falar daquele assunto com Gawain. Aquela mulher repugnante! Como ousava pedir para se casar com o melhor dos cavaleiros! Mas o ar da tarde estava ameno e o encontro fatídico com Gromer deixou Artur pressionado. Ao retornar ao castelo, Artur viu-se contando ao sobrinho sobre sua aventura, e concluiu:

— Ela sabe a resposta, eu tenho certeza disso, mas eu não pretendia contar nada a você.

Gawain sorriu docemente, sem saber ainda qual era a proposta de Ragnell.

—  Mas esta é uma boa notícia, tio. Por que o senhor está tão desanimado?

Evitando encarar o sobrinho, o rei contou qual era a exigência de Ragnell, junto com uma descrição detalhada de seu rosto grotesco, de sua pele cheia de verrugas e seu tamanho avantajado.

— Que bom que eu posso salvar a sua vida! — respondeu Gawain imediatamente. Sem dar ouvidos aos protestos do tio, Gawain declarou: — É minha escolha e minha decisão. Vou voltar lá com o senhor amanhã e concordar com o casamento, desde que a resposta dela salve a sua vida.

Bem cedo na manhã seguinte Gawain saiu a cavalo com Artur para encontrar Lady Ragnell. Mesmo vendo-a cara a cara, Gawain manteve-se inabalável em sua decisão. A proposta dela foi aceita e Gawain fez uma reverência graciosa para ela.

— Se amanhã a sua resposta salvar a vida do rei, nós nos casaremos.

Na manhã fatídica, Gawain cavalgou até metade do caminho com Artur, que assegurou ao cavaleiro que iria tentar todas as outras respostas primeiro.

O guerreiro alto e forte estava esperando por Artur, com sua espada brilhando ao sol. À medida que Artur ia recitando uma resposta depois da outra, Gromer gritava:

— Não! Não! Não! — até que finalmente ele ergueu a espada acima da cabeça.

— Espere! — gritou o rei. — Eu tenho mais uma resposta. O que uma mulher deseja acima de tudo é o poder de soberania, o direito de exercer o seu livre-arbítrio.

Com uma imprecação de raiva, Gromer jogou a espada no chão.

— Você não descobriu a resposta sozinho! Minha maldita meia-irmã foi quem lhe contou! Vou decepar a cabeça dela. Vou atravessá-la com a minha espada! — Virou-se e voltou para a floresta, deixando uma torrente de imprecações atrás de si.

Artur voltou para o local onde Gawain esperava junto de Lady Ragnell. Os três cavalgaram de volta para o castelo em silêncio. Só Ragnell parecia bem humorada.

A notícia de que iria ocorrer um estranho casamento entre uma megera horrorosa e o magnífico Gawain espalhou-se rapidamente pelo castelo. Ninguém conseguia imaginar o que havia convencido Gawain a se casar com aquela criatura. Alguns achavam que ela devia possuir grandes terras e propriedades. Outros acreditavam que ela devia ter usado alguma magia secreta. A maioria estava simplesmente estarrecida com o destino do pobre Gawain.

O rei Artur falou reservadamente com o sobrinho.

— Nós poderíamos propor um adiamento — disse ele.

— Dei a ela a minha palavra, tio. O senhor gostaria que eu quebrasse uma promessa? — respondeu Gawain.

Assim, o casamento aconteceu na abadia, e a estranha festa de casamento foi assistida por toda a corte. Durante todo aquele longo dia e aquela longa noite, Gawain permaneceu simpático e cortês. Não demonstrou nada além de uma atenção gentil para com a sua noiva.

 

 

 Finalmente, o casal se retirou para os seus aposentos.

— Você se manteve fiel à sua promessa — observou Ragnell. —Você não demonstrou nem piedade nem repulsa para comigo. Agora que estamos casados, venha beijar-me.

Gawain se aproximou imediatamente dela e a beijou. Quando se afastou, viu diante de si uma linda e serena mulher, de olhos cinzentos e rosto sorridente. Seus cabelos se eriçaram com o choque, e ele deu um pulo para trás. — Que espécie de feitiçaria é esta?

Ragnell respondeu: — Você me prefere assim? — lentamente deu uma volta em torno dele.

— É claro que sim, mas não compreendo — gaguejou Gawain, confuso e assustado.

— Meu meio-irmão, Gromer, sempre me detestou. Ele aprendeu truques de feitiçaria com a mãe dele e usou-os para me transformar numa megera horrorosa. Ordenou que eu vivesse com este corpo até que o melhor cavaleiro da Bretanha me escolhesse como esposa.

— Mas por que ele a odiava tanto? – perguntou Gawain.

Com um sorriso nos lábios, Ragnell respondeu: — Ele me achava atrevida e pouco feminina, porque eu me recusava a aceitar as ordens dele, tanto em relação à minha propriedade quanto à minha pessoa.

Com grande admiração, Gawain disse: —  Então você conseguiu o impossível e o feitiço dele foi quebrado!

— Só em parte, meu querido Gawain. — Ela o encarou com firmeza — Você pode escolher como eu vou ser. Você quer que eu fique assim, com o meu próprio corpo, à noite em nosso quarto? Ou me quer grotesca à noite no nosso quarto e com o meu próprio corpo de dia no castelo? Bonita de dia ou bonita à noite, pense bem antes de responder.

Gawain ajoelhou-se diante da noiva e respondeu imediatamente. —  Esta é uma escolha que eu não posso fazer. Diz respeito a você, minha querida Ragnell, e só você pode escolher. O que quer que você escolha, eu a apoiarei.

Ragnell soltou um longo suspiro. A alegria em seu rosto deixou-o encantado.

— Você respondeu bem, meu querido Gawain. Sua resposta quebrou completamente o feitiço de Gromer. A última condição que ele impôs foi que, depois do casamento, o maior dos cavaleiros da Bretanha, meu marido, deveria dar-me o poder do exercício da soberania, o direito de exercer o meu livre arbítrio. Só então o terrível feitiço seria quebrado para sempre.

E assim, com muito encantamento e alegria, começou o casamento de Sir Gawain e Lady Ragnell. 

A PSICOLOGIA DA MEGERA E OS PERIGOS MÍTICOS DO DESEJO FEMININO

Esta antiga história tem significados muito mais profundos do que aparenta. É uma história não só a respeito de autodeterminação e autoconfiança em mulheres, mas também do aprisionamento do casamento patriarcal tradicional, que, quando a história foi escrita, exigia por lei que a mulher entregasse ao marido sua liberdade e suas propriedades. Na verdade, estou certa de que esta história foi contada como um alerta para mulheres e homens acerca dos riscos psicológicos e interpessoais de uma situação que eliminava a soberania pessoal de uma mulher.

No período medieval, onde se originou a história, o poder que tinha a megera mítica de roubar a vitalidade das pessoas era bem conhecido de todos. Dizia-se que a megera montava nos corpos de homens e crianças à noite, quando eles estavam dormindo, absorvendo o seu vigor. Pela manhã, suas vítimas acordavam sentindo-se fracas e sem vitalidade. O beijo era a sua arma mais poderosa. Aproximar-se de seus lábios significava arriscar-se ater sua alma sugada. Um público medieval teria admirado a coragem de Gawain em beijar sua noiva de forma tão franca. Também teria adivinhado que ele o fez sem hesitação porque desconfiou da verdadeira natureza de Ragnell. Ele teria sido visto como alguém capaz de enxergar além da aparência dela, a fim de acreditar que ela não era uma megera destruidora que o esgotaria e dominaria.

As histórias sobre o poder maligno das megeras eram uma forma usada pelas sociedades primitivas para desmerecer e desmoralizar o poder feminino. Retratar o poder feminino como algo desvitalizador, esmagador e venenoso — especialmente para homens e crianças inocentes — encorajava a crença em um feitiço emocional negativo que só podia ser lançado por uma mulher exigente.

Hoje, quando querem ser desejadas, as mulheres involuntariamente reforçam a crença misógina de que uma mulher exigente deve ser temida e subjugada. Quando agimos como se os nossos desejos fossem poderosos demais e pudessem dominar a vontade ou o bom senso do outro, reinventamos a psicologia negativa da bruxa/megera. Nós corremos o risco de nos vermos identificadas, e aos nossos desejos, com um estranho poder alienígena, quase sobre-humano.

Quando Anne, por exemplo, precede suas necessidades e desejos com expressões do tipo: “Você se importa que eu…” ou “Seria tão bom se você…”, ela dá a entender que deseja algo especialmente trabalhoso ou difícil que não pode ser declarado com franqueza. Quando embrulhamos os nossos desejos em mantos de sutilezas e seduções, nós nos protegemos de sermos compreendidas inequivocamente e damos a entender que os outros também devem ser gentis conosco. Esta característica de casca de ovo do desejo feminino sugere que nossas necessidades devem permanecer ocultas, que elas são perigosas.

Em sessões de terapia, frequentemente eu lembro às pessoas que pedidos diretos de apoio, de apreciação, até mesmo de elogio são necessários quando a necessidade é urgente. As mulheres normalmente me desafiam, dizendo: “Isso estraga o efeito. As pessoas deviam proporcionar tudo isso espontaneamente.” Minha resposta é que isso não existe quando se trata de apoio interpessoal, e que a comunicação clara e franca evita a mensagem indireta de que os outros devem intuir os nossos desejos. Tentar provocar respostas nos outros sem manifestar o que se deseja não apenas confunde, mas carrega também um significado oculto de perigo — de que alguma coisa é tão perturbadora que não pode ser expressa em palavras.

É só quando falamos com franqueza, com autoconfiança e segurança, que nos livramos deste significado negativo do desejo feminino. Reconhecer nossos desejos como sendo humanos (e não monstruosos) significa que podemos falar deles com calma e clareza. Embora estivesse fadada a ser uma mulher detestável, Ragnell sabia que suas necessidades e desejos eram aceitáveis. Ela fez suas exigências ao rei Artur de uma maneira que mostrou confiança em si mesma e o seu conhecimento de que Gawain tinha uma escolha a fazer em sua resposta. Ela não se desculpou nem culpou ninguém. Ela falou corajosamente, de coração aberto. 

Mas, como muitas mulheres me fizeram ver, Ragnell não conquista a sua liberdade sozinha. Ela tem de aceitar as condições impostas pelo meio-irmão: que o maior cavaleiro de toda a Bretanha concorde em se casar com ela, e que este cavaleiro, seu marido, dê a ela o poder da soberania sobre si mesma, o direito de fazer suas próprias escolhas. Para algumas leitoras, estas condições parecem diminuir o feito de Ragnell. Mas nós não devemos interpretar esta história tão ao pé da letra.

A história de Ragnell simboliza o desenvolvimento da autodeterminação de uma mulher em uma tradição patriarcal que exigia que ela abdicasse de seus direitos e de sua propriedade depois do casamento. Ragnell tem que se valer de homens poderosos para ajudá-la a se tornar livre, mas isso não difere muito da nossa situação hoje em dia. Em nenhum momento Ragnell se mostra passiva, dócil ou dissimulada. Ela desafia o meio-irmão e encontra uma forma de cumprir as condições impostas por ele. Ela enfrenta até mesmo o rei, ao dizer-lhe que ele não sabe o que uma mulher deseja. Ela observa o marido cuidadosamente e apresenta com habilidade o seu desafio de ser levada a sério (beijá-la) no momento em que as condições pareciam favoráveis para isso. E, finalmente, ela sabe que não pode conquistar a autodeterminação sem confiar nos outros; ela faz suas perguntas a Gawain para testá-lo, para ver se ele entendeu o dilema básico de sua vida.

Ragnell simboliza um processo através do qual uma mulher reivindica o direito de ser ela mesma, de comandar suas próprias ações. Quando nós a conhecemos, ela é a temida bruxa-megera, o símbolo da mulher emocionalmente exigente. No entanto, percebemos que ela é mais do que isso, pois até mesmo o rei se convence de sua sabedoria. À medida que a história prossegue, somos conquistadas por sua coragem e seu bom humor. Ficamos felizes ao ver que ela não se deixa humilhar nem subjugar pela opinião dos outros. E finalmente, quando Gawain se adianta para beijá-la, acreditamos que ele percebe algo de diferente nela. É claro que ele fica mesmo perplexo com sua transformação, do mesmo modo que nós. E quanto a essa transformação? É só quando Gawain se ajoelha diante dela e dá a resposta correta que entendemos realmente que ela não foi transformada pelo beijo dele, e sim em decorrência de sua própria coragem de buscar a liberdade e enfrentar o homem com quem acabou de se casar.

Através do exemplo, Ragnell nos mostra como reagir às imposições do patriarcado a fim de assumirmos o controle de nossas próprias vidas. Primeiro, ela se mantém reservada diante do desafio. Embora, de acordo com todos os padrões, ela seja feia, ela não se preocupa com a aparência e mantém uma atitude resoluta. Ela é o que é. Ela se responsabiliza por suas próprias palavras ao desafiar o rei e o irmão. Ela se sente livre para organizar sua vida de acordo com seus desejos, embora corra o risco de ser punida. Ragnell reconhece seu desejo de soberania pessoal e não se deixa desencorajar por feitiços lançados contra ela, nem por insultos ou rejeições. Ela não permite que suas motivações sejam aviltadas, nem mesmo pelo rei.

O FALSO PODER DA MUSA

Para entender por quê, muitas centenas de anos depois, ainda é tão difícil para as mulheres seguir o exemplo de Ragnell, precisamos examinar mais de perto a maldição de seu meio-irmão. Gromer, que achava que Ragnell era atrevida e pouco feminina por se recusar a obedecer às ordens dele. Ela era uma ameaça à sua dominação masculina, o protótipo da mulher arrogante. Então o meio-irmão a transformou na imagem que ele fazia daquela ameaça — uma megera feia e assustadora, uma bruxa castradora. O desejo dele era de que Ragnell ficasse assim para sempre, mas sua autodeterminação era maior do que Gromer imaginara. Ela se livrou do feitiço ao tomar as rédeas da própria vida.

Este movimento para desonrar o desejo feminino transformando-o na imagem de uma megera combina-se com um movimento contrário de elevar a beleza e a graça femininas a posições de pretenso poder. Se o desejo feminino é sufocado pela dominação masculina, como as mulheres podem ser convencidas a cumprir seus papéis de esposa ou mãe, de trabalhadora ou amante? São-lhe prometidos outros meios de atingir o poder, meios que permanecem sob o controle masculino. O poder feminino é a beleza é o refrão que leva jovens mulheres em toda parte a acreditar que terão influência e status se usarem as imagens “certas”.

Ao longo de vários séculos de arte e literatura patriarcais, encontramos uma imagem recorrente da jovem que provoca desejo, retratada como o oposto exato da megera desvitalizante. Esta musa é a essência da vitalidade e da vida, enquanto a megera é a essência da sufocação e da morte.

A musa de hoje aparece sob a forma de uma mulher-criança anoréxica. Sua imagem é infantil ou desamparada, com um olhar vazio. É difícil imaginar que ela deve ser estimuladora e provocadora, mas não há dúvida de que ela é o paradigma da moda e da beleza feminina no mundo contemporâneo, imitada por jovens mulheres em toda parte. Seus principais papéis na nossa cultura são os de top model, ingênua, celebridade e estrela de cinema. Não importa a forma que tenha em um determinado momento cultural, no entanto, a musa desperta fascinação, inspiração e desejo de procriar em seus admiradores masculinos e, por extensão, em todos nós.

Mas a musa não é ela mesma. Ela está sempre sob o controle de seu mestre: ele é o Sujeito e ela é o Objeto de Desejo. Uma mulher que se identifica com a condição de Objeto de Desejo não é a fonte de sua própria inspiração; ela não sente que sua vida lhe pertence. Sua vitalidade e sua imaginação, seus esforços e seus planos são direcionados para os desejos dos outros, para que elas sejam desejáveis como a mulher-criança anoréxica, a bela dama, a mãe que se sacrifica pelo filho. Ser Objeto de Desejo significa não possuir um eu central, uma autonomia clara e uma autodeterminação controladas por si mesma. Ragnell, mesmo na forma bonita, não é uma musa porque é Sujeito de seus próprios desejos.

Em comparação, ser Sujeito de seus próprios desejos não quer dizer não ter uma aparência atraente ou maneiras agradáveis. Mas aparência, maneiras, simpatia, auto sacrifício nunca são os principais motivadores para a mulher que é Sujeito. Ela — como Ragnell — fala com confiança e com clareza mesmo diante do desafio, do conflito e de sua própria ansiedade. Como quer ser conhecida como realmente é, em vez de como aparenta ser, ela é franca e direta.

Por quê, então, apesar dos recentes movimentos feministas, nós continuamos a idolatrar a musa? Porque continuamos a acreditar que o poder feminino é doentio e sufocante — uma espécie de perigo que suga a alma e que precisa ser repelido tanto por homens quanto por mulheres. Então nós apoiamos inconscientemente a fantasia masculina de que o único poder legítimo que deve ser encorajado nas meninas e nas mulheres é tornarem-se Objetos de Desejo.

Tanto homens quanto mulheres têm horror à figura da bruxa-megera. As mulheres não querem ser qualificadas de exigentes, agressivas, mandonas demais. Nós não queremos que nos vejam como do tipo que intimida os outros com ultimatos, exigências ou necessidades sufocantes. Em nossa pressa de nos afastar da bruxa/megera, vamos na direção da musa e do seu falso poder como Objeto de Desejo. Embora pareça prometer que o poder feminino é a beleza, ela nega à mulher o direito à sua soberania. A musa fica sempre sob o controle do mestre; é a vida do mestre que é realçada e aperfeiçoada através de sua inspiração.

Onde se pode ver isto mais claramente é em Diana, princesa de Gales, a musa cultural da nossa época. Diana é a personificação do Objeto de Desejo coletivo, uma musa para o mundo contemporâneo. Nós usamos sua imagem para nos inspirar e excitar. Nossa fome por seus efeitos vitalizantes é o aspecto crucial do apelo público de Diana, tanto na vida quanto na morte.

A própria Diana foi tragicamente enredada na crença de que o poder da mulher é a beleza. Observem seu destino trágico: ser incessantemente perseguida por repórteres, fotógrafos e por um público que achava que ela pertencia a eles e que ela cortejava incansavelmente em sua busca pelo estrelato. Diana mantinha de forma obsessiva um corpo magro, chegando ao ponto de sofrer de um distúrbio alimentar que a levava a vomitar até quatro vezes por dia. Mesmo depois de ter vencido esta perigosa doença, ela controlava cuidadosamente a dieta e os exercícios. Ela era trágica e desesperadamente motivada pelo desejo de ser desejada.

Como o mais puro Objeto de Desejo, Diana buscou relacionamentos românticos com parceiros não confiáveis, começando pelo príncipe de Gales. Ela pode ter sido amada até certo ponto por cada um dos seus pares, mas os motivos de cada um deles eram, no mínimo, confusos. Eles a desejavam principalmente pelo que ela simbolizava e não pela pessoa que ela era. Eles usaram o poder da aparência dela, e suas dificuldades de autoestima, em benefício próprio. Eles não retribuíram este poder a ela, como Gawain fez com Ragnell. A maldição de Diana foi ser musa, como a maldição de Ragnell foi ser megera. E, como veremos, a maldição da musa é normalmente mais devastadora: embora a megera possa não ser desejada, ou mesmo amada, ela pode conhecer os seus desejos se assim o quiser. A musa não, pois assim que o faz ela cessa de ser musa.

Diana é um símbolo do desejo feminino do fim do século XX. Ela representa o conflito e a confusão, a vergonha e a fascinação de mulheres potencialmente liberadas tentando ser Objetos de Desejo. Nós a buscamos com nossa necessidade de viver por meio dela, de ser estimuladas por ela, até que o trágico acidente de sua morte expressou como são brutalmente altas as apostas neste jogo. Tragicamente, Diana permanecerá sempre um Objeto de Desejo — tragicamente porque no momento da sua morte ela estava começando a caminhar na direção do objetivo de expressar os seus próprios desejos.

UMA QUESTÃO DE CORAÇÃO

Durante e após o divórcio, Diana falou francamente e se tornou um modelo para outras mulheres que, ao saber de suas batalhas pessoais, pareceram sentir uma promessa de libertação de sua própria vergonha e segredos de família. Como a psicóloga Carol Gilligan observou: “Ao romper tão publicamente com um enclausuramento de silêncio forçado pela vergonha, Diana descobriu que, ao deixar o coração falar, ela tocava o coração dos outros. Em vez de evitá-la, as pessoas a beijavam. Como se sentia psicologicamente sem lar e rejeitada, ela podia estender a mão sem a sombra da condescendência para aqueles que estavam fisicamente sem lar e para pessoas rejeitadas por causa da AIDS e da lepra.” Admitindo suas vulnerabilidades e ao mesmo tempo mantendo sua imagem de donzela sedutora, Diana abalou a crença de que a beleza, sozinha, pode proteger até mesmo uma princesa de contos de fada. No entanto, devido a sua morte prematura, Diana poderá ser lembrada mais por sua beleza — aquela “intoxicação efervescente, borbulhante”, como disse um repórter — do que por sua corajosa recusa final de se esconder na vergonha e no silêncio, a menos que mudemos a nossa compreensão do desejo feminino.

Falar a verdade, como Diana começara a fazer, é o único caminho para sair da superficialidade das falsas promessas de querer ser desejada para a possibilidade de ser amada. Se querer ser desejada é uma questão de imagem, então querer ser amada é uma questão de coração. Ser amada é ser compreendida no nosso falível e verdadeiro espírito. Como Ragnell nos mostra, ser fiel a si mesma não significa julgar ou culpar ou deixar a língua pronunciar palavras duras e acusadoras. Significa, sim, expressar seus pensamentos e emoções com respeito pelos outros, sem tentar esconder as dificuldades e as arestas a fim de manter a imagem limpa e brilhante.

Quando vivemos de acordo com a verdade, descobrimos o que caracteriza não só a nossa natureza individual, mas também a nossa humanidade. No entanto, falar a verdade pode nos expor a críticas e julgamentos, e principalmente aos nossos próprios temores acerca da natureza de nossos desejos. Admitir quem somos e o que queremos, reconhecer nossa dependência e gratidão, coloca-nos numa posição vulnerável. Aprendemos que as forças e as capacidades humanas são sempre limitadas pela fraqueza, pelo cansaço, pelo esquecimento, pelos maus hábitos e por outras imperfeições. Essas limitações inatas nos levam a perceber até que ponto precisamos de outras pessoas e nos obrigam a apreciar o quanto somos ajudadas e sustentadas por nossos relacionamentos. Esconder-se da verdade leva ao oposto: a uma autoproteção ansiosa, ao isolamento, ao medo e à vergonha.

 

ESCONDENDO-SE NA FLORESTA

Todas nós lutamos contra a vergonha, escondendo-nos e às nossas necessidades porque elas parecem erradas ou ruins. O distúrbio alimentar de Diana piorou muito durante a época em que ela se sentiu envergonhada com a rejeição do marido, que preferiu a amante. Inconscientemente, ela tentou controlar estes sentimentos através do controle obsessivo do corpo, aparentando magreza apesar de consumir grandes quantidades de comida. Ela escondeu de si mesma e do mundo o quanto se sentia vazia e faminta, desejando ser preenchida pelo desejo do outro.

A floresta em que Lady Ragnell vivia como uma megera pode ser compreendida como um símbolo de vergonhaum lugar onde nos escondemos quando sentimos que nossa identidade ou nossos desejos são ruins. Embora Ragnell não expresse o sentimento de vergonha, podemos imaginar que ela vivia uma vida solitária e isolada na floresta, esperando a hora de sair de lá. Mulheres que se identificam com a bruxa megera — a mulher negativamente poderosa — quase sempre se escondem porque sentem vergonha.

A vergonha é uma emoção que expressa o desejo de se esconder, de sumir ou até mesmo de morrer porque achamos que o eu é vazio, ruim ou inferior. Quando sentimos vergonha, temos a impressão de que nada podemos fazer, porque a vergonha está ligada a uma sensação de ser, não a algo que estejamos fazendo. Se você acredita que não pode fazer nada a respeito da sensação de que existe algo de errado com relação a quem você é, então faz sentido que você tente evitar ficar exposta. Quando nos sentimos envergonhadas, inventamos toda espécie de subterfúgios e mentiras para nos proteger.

Quando penso na floresta de Ragnell como um símbolo de vergonha, penso em mulheres escondendo-se atrás de relacionamentos insatisfatórios, às vezes sem compromisso, até mesmo cruéis e abusivos. Neste ambiente baseado na vergonha, as mulheres são intimidadas através de xingamentos, traições, ameaças de violência e violência real, o que geralmente é interpretado como uma indicação de que existe algo muito errado com as próprias mulheres. Penso também no problema mais comum do homem que diz para a sua companheira: “Eu só preciso de mais espaço, de algum tempo afastado de você para poder organizar minhas ideias.” Este tipo de declaração subentende que a mulher suga o espaço entre eles, enchendo-o com sua presença esmagadora. Nesse exemplo, a imagem da megera que suga a alma aparece no que muito veem como um diálogo igualitário entre os sexos — racionalizado pela psicologia popular de que um homem precisa separar-se de uma mulher a fim do possuir a si mesmo, como se a presença da mulher impedisse esta experiência.

Quando começou a fazer psicoterapia comigo, Cheryl tinha trinta e três anos de idade, era solteira, muito inteligente, muito instruída, e trabalhava como sócia numa firma de advocacia na Filadélfia, onde a grande maioria era de homens. De estatura mediana, ela pesava cerca de setenta quilos e sentia vergonha de seu peso e de seu corpo. Embora fosse musculosa e saudável, achava constantemente que havia alguma coisa errada com sua aparência. Cheryl estava envolvida romanticamente com Brad, que tinha vinte e cinco anos, era bonito, cheio de energia, menos instruído que ela e extremamente esquivo. Eles já estavam se relacionando há um ano e as coisas não iam bem. Mas Cheryl não queria falar de seu relacionamento. Ela queria falar de si mesma, porque tinha medo de que houvesse alguma coisa errada com ela. Assim como a princesa Diana, Cheryl estava escolhendo homens que acabavam traindo-a, sexual ou financeiramente. Antes de Brad, ela se apaixonara por dois homens que rapidamente manifestaram o seu amor por ela, mudaram-se para o seu apartamento e logo começaram a se aproveitar de sua alta renda e baixa autoestima.

Cheryl queria se casar e ter filhos, mas não fazia ideia de como iria conseguir isto. Ela não queria “pressionar” Brad, que ainda estava terminando a faculdade. De fato, ela não queria nem talar de seus desejos com Brad, porque tinha medo de que ele fugisse assustado se ouvisse falar em casamento e família. Cheryl dizia que queria parecer que estava apenas “saindo com” Brad de um modo aberto e relaxado para que ele pudesse ver que ela não era o tipo de mulher que iria pressioná-lo.

Depois de estar fazendo terapia comigo por quase dois anos, morando com Brad de vez em quando, Cheryl finalmente o enfrentou: ela não estava mais disposta a esperar que ele se decidisse. Queria que ele assumisse o compromisso de um relacionamento permanente, com a perspectiva de casamento, ou era melhor terminarem. Apesar daquela declaração decidida, entretanto, Cheryl não estava inteiramente convencida de seu valor e sua capacidade de sedução. Desgastada por sentimentos de vergonha a respeito do seu corpo e com medo de que nenhum homem fosse escolhê-la, Cheryl expressou queixas e culpa. Ela disse que estava “revoltada” por Brad ter ficado com ela por tantos anos sem fazer nenhuma promessa a respeito do futuro. Em vez de falar de forma responsável, ela culpou Brad por fazê-la sentir-se mal em relação a si mesma. Seus sentimentos de vergonha a haviam mantido na floresta por tempo demais. Inconscientemente, Cheryl representou a pior imagem que Brad podia fazer da bruxa-megera: o monstro poderoso e faminto que não pode ser saciado. Esta fantasia da megera perigosa está calcada na crença de que suas exigências e desejos são intermináveis, vorazes, consumidores. Quando as mulheres se identificam com a culpa, elas acreditam que são vazias ou sem valor e se voltam para os outros para que eles as preencham com manifestações de apoio e apreço. Quando esta vergonha está na base da identidade de uma mulher, nada preencherá o vazio; a vergonha é como um aspirador ou um buraco negro que não consegue reter os elogios e palavras de apoio que são oferecidos.

Cheryl deu a Brad duas semanas para se decidir, mas Brad terminou o relacionamento dois dias depois. Naturalmente, Cheryl ficou zangada, desolada e um tanto inclinada a culpar a mim e à terapia por obrigá-la a falar diretamente e “estragar” o seu relacionamento. Aos poucos, Cheryl e eu examinamos as crenças e fantasias que a ligavam ao sentimento de vergonha. Descobrimos por que tinha se sentido atraída por tantos homens mentirosos e irresponsáveis ao longo dos anos e por que ainda queria que mostrassem a ela que não era uma mulher má que pilhava o espaço de um homem ou destruía a sua alma.

À medida que fomos passando por esse processo, Cheryl aprendeu mais a respeito de seus complexos psicológicos, o nome que Carl Jung deu para as tendências emocionais que nós todos temos para nos proteger, do mesmo modo que o fazíamos na infância, para imaginar um mundo repleto dos perigos que percebemos e encontramos em nossas famílias de origem. Esses complexos são tendências inconscientes e semiconscientes para representar dramas emocionais que podem ou não ser conhecidos de nós, estimulados por hábitos adquiridos em nossos elos de dependência durante o berço e a infância, com pais ou irmãos.

Quando confrontou Brad diretamente com os seus desejos, Cheryl teve medo de que ele fosse dizer que ela não era fisicamente atraente para ele. Ela também teve medo de que ele fosse acusá-la de ser injusta com ele, de querer demais, apesar de ela ter sido sempre extremamente justa e generosa. Isto só fez sentido quando nós descobrimos que Cheryl tinha se sentido ao mesmo tempo atraída e intimidada pelo seu imprevisível pai quando era pequena. Um charmoso Bad Boy, seu pai era também um advogado de renome, aparentemente respeitado pela comunidade. Ele era “um anjo na rua” e um “demônio dentro de casa”, como dizia Cheryl. Mulherengo, o pai de Cheryl humilhava a mulher e culpava-a por não ser capaz de sentir amor por ela depois dos primeiros anos de casamento.

Cheryl testemunhou muitas brigas entre seus pais, mas criticava mais a passividade da mãe do que as acusações do pai. Cheryl queria que a mãe enfrentasse o pai e afirmasse o próprio valor. Cheryl resolveu que ela conquistaria o amor e a admiração do pai, competindo com ele. Ela buscou a aprovação dele destacando-se na escola em todas as matérias de que ele gostava e desenvolvendo um charme social que combinava com o dele. Ela ganhou a admiração e o interesse dele de tal maneira que, no fim, sentiu como se as formas do pai reagir a ela, seu amor e sua admiração, estivessem sob o controle dela. Se ele deixasse de notá-la ou de elogiar alguma de suas realizações, ela acreditava que a culpa era dela. Seu “poder” sobre ele era a do Objeto de Desejo; ela imaginava que o controlava por meio de suas ações, de sua imagem, de suas realizações. Este foi o complexo paterno que Cheryl recriou com Brad e com seus outros amantes: inconscientemente, ela queria ser o único Objeto de Desejo, a companheira tão esperada que iria atender perfeitamente às necessidades do homem.

Suas energias eram primeiro empregadas para que o homem se sentisse bem consigo mesmo e à vontade na vida dela. Depois ela procurava ser aprovada e admirada por sua inteligência e sedução. Como tinha vergonha do seu corpo, Cheryl acreditava que deveria ser ainda mais acolhedora e agradável, de modo que o seu parceiro continuasse se sentindo fisicamente atraído por ela. Quando o interesse do parceiro parecia estar diminuindo, Cheryl tentava fazer algo especial — cozinhar um prato saboroso ou comprar um bonito presente — para mantê-lo envolvido.

Complexos psicológicos nos levam, como levaram Cheryl, a repetir os temas emocionais da infância, especialmente nos relacionamentos adultos e com os filhos. A menos que nos tornemos conscientes destes complexos, eles nos dirigem por meio de impulsos subjetivos e imagens que parecem ser a realidade. Complexos são o carma psicológico que trazemos conosco das nossas famílias de origem. Nós os adquirimos honestamente, quando nossa sobrevivência e nosso sustento dependiam dos outros.

Na vida adulta, eles são provocados por qualquer estímulo — sons, gostos, tato, cheiros, estados físicos (como náusea) — que conhecemos dos contextos originais que nos colocaram em perigo ou nos super estimularam.

Quando nossos complexos estão ocultos de nossa consciência, eles podem tornar-se monstruosos, diminuindo nossa vitalidade e nossa motivação. A experiência de um descontentamento geral e de uma espécie de vazio interior sem razão aparente são sintomas de complexos ocultos em suas formas mais desagradáveis. Desejos e medos não identificados manifestam-se como fortes impulsos que podem aparecer em sonhos e fantasias como demônios, cobras, inundações, terremotos, invasores ameaçadores ou fantasmas famintos que podem nos matar. Eles podem aparecer também quando estamos acordados, na forma de vícios e compulsões que não fazem nenhum sentido lógico. Na verdade, a megera monstruosa escondida na floresta pode ser interpretada como sendo o complexo inconsciente das mulheres acerca do poder feminino, que só pode se tornar civilizado e refinado quando é ouvido, examinado e trazido para a luz do dia.

Assim, Cheryl descobriu o que a ligara a homens irresponsáveis: ela sentia atração por homens como seu pai, a quem ela idealizava e tentava agradar, deixando de notar o quanto eles eram limitados, errados ou até maus. Ela assumia toda a responsabilidade pelo que dava errado nos relacionamentos e sua vergonha aumentava, porque acreditava que havia algo de muito errado com ela, sem conseguir enxergar as fraquezas e os erros dos seus parceiros.

Hoje, cinco anos depois, Cheryl está casada com um homem muito diferente do papai. Ele é um advogado bem-sucedido, como Cheryl e seu pai, mas ele e Chery! Têm um relacionamento de envolvimento mútuo e de amizade. Juntos, trabalham como mediadores profissionais em casos de divórcio e separação. Agora Cheryl ensina outras mulheres e homens a dizerem a verdade num ambiente de respeito e de justiça.

A perda de Brad proporcionou a Cheryl o caminho para um novo desenvolvimento. Ela aprendeu a lição que Ragnell dá a entender quando diz a Artur: “Eu não pedi que o senhor me desse o cavaleiro Gawain. Se Gawain concordar em se casar comigo por livre e espontânea vontade…” Esta é a lição de conhecer os limites e as limitações de seu desejo e seu poder. Quando aprende a falar a verdade, você reconhece que não possui nenhum poder especial sobre os outros para obrigá-los a cumprir suas ordens. Você não pode pressionar nem afugentar os outros ao expor os seus desejos. Outros adultos também têm livre-arbítrio. Todos nós temos o dever de expressar nossos desejos e respeitar os dos outros. Quando fala a verdade francamente, você passa a conhecer as possibilidades e limitações de ser o Sujeito do Desejo. Para as mulheres, isto significa vencer o medo de sermos vistas como a bruxa-megera a fim de dizer com clareza e sinceridade o que queremos, sem exigir que nos seja dado e sem achar que assumimos o controle do outro.

O SUJEITO DO DESEJO

Seja por ignorância do significado verdadeiro de autodeterminação ou por causa do feitiço decorrente do desejo de ser desejada, nós mulheres muitas vezes não compreendemos ou esquecemos que o nosso desejo mais profundo é ter soberania sobre nossas próprias vidas, ter o direito e a responsabilidade de agir com livre arbítrio — ser Sujeitos de nossos próprios desejos. Isto ocorre com todos os seres humanos, não importa a condição deles. É só no contexto deste tipo de soberania pessoal que a face mais bondosa do desejo pode brilhar e se desenvolver, através da responsabilidade e da autodeterminação de viver de uma forma compassiva e consciente.

Ser o Sujeito de seus desejos significa não só expressar o que você quer, mas também assumir a responsabilidade por seus desejos. Estas são questões intimamente relacionadas, mas distintas. Enquanto ser assertivo significa declarar francamente suas necessidades e desejos, assumir a responsabilidade implica responder por si mesmo, escolher eticamente e ser digno de confiança. Assumir a responsabilidade está um passo adiante de ser assertivo. Por exemplo, na terapia, às vezes os clientes dizem alguma coisa do tipo: “Eu falei com o meu parceiro sobre a minha necessidade de mais apoio e companheirismo, e ele disse: ‘OK. E o que é que você quer que eu faça com relação a isso?’ Eu fiquei furiosa. Obviamente, ele não está ligando para os meus sentimentos.”

“E o que foi que você respondeu?”, pergunto calmamente. A resposta mais frequente é: “Nada. A conversa terminou porque ele simplesmente não entende. Eu não tenho mais nada a dizer.” Quem fala coloca em quem ouve a responsabilidade de levar adiante a conversa, mas quem fala é quem tem o desejo.

Para lidar responsavelmente com o problema, quem fala deve

continuar a comunicar o seu desejo.

Ser responsável significa tentar de diferentes maneiras expressar o que quer, até conseguir ser ouvido e entendido. Se você estiver presa num complexo psicológico, achando (por exemplo) que nunca é ouvida nem entendida, então terá de desenvolver um bocado de paciência e de tolerância para assumir a responsabilidade por seu desejo e não culpar o outro por ter falhado antes mesmo de ter tentado até o fim. Esta tolerância é como aplicar uma disciplina de meditação na conversa — respirar profundamente e voltar calmamente ao assunto em questão. Como Ragnell, acreditar que você pode com base no conhecimento que possui de si mesma. Se tudo o mais falhar, diga simplesmente, com sinceridade, algo do tipo: “Estas são as minhas necessidades (ou condições), e quando você estiver preparado para conversar sobre elas, por favor me avise.”

Ser Sujeito dos nossos desejos significa aceitar a experiência desafiadora e cheia de matizes de descobrir quem nós somos, mapeando as diversas camadas de nossas vidas subjetivas e respondendo por elas. Por este processo, descobrimos o quanto somos limitadas pelas contingências e acontecimentos que estão fora do nosso controle. Quando assumimos a responsabilidade por nossos próprios desejos, descobrimos o quanto dependemos dos outros, e quantas vezes estamos enganadas ou erradas ao desejar certas coisas. A tolerância que desenvolvemos para com nossos erros e pontos cegos se estende para as imperfeições dos outros, especialmente daqueles a quem amamos.

Portanto, como podemos afirmar a legitimidade dos nossos desejos sem medo de repercussões e da vergonha? Como podemos usar os nossos desejos para atingir o autoconhecimento e a autodeterminação, para assumir a responsabilidade por nós mesmas e nos tornarmos mais autênticas nas nossas relações com os outros? Será que podemos alcançar um lugar em que nossos desejos não mais nos impulsionem e onde nos sintamos satisfeitas?

A história de Ragnell nos dá algumas pistas preliminares, e a morte de Diana serve como alerta. Querer ser desejada é normalmente um desejo inteiramente oculto, confundido com o desejo de ser amada. A fim de evitar a tentação de se tornar o Objeto do Desejo, temos de aprender a vencer nossa tendência de representar uma imagem.

Temos de declarar firmemente o que queremos, mesmo que ao fazê-lo corramos o risco de sermos rotuladas de bruxas/megeras. Confiantes em nosso conhecimento, podemos mostrar com calma e com firmeza que não tememos o desejo feminino, que queremos nos livrar do domínio da aparência e de seu falso poder. Enquanto as mulheres não se recusarem a viver na crença de que o poder feminino é a beleza, não conseguiremos alcançar o estágio seguinte de nosso desenvolvimento, a capacidade de conhecer e sustentar as nossas próprias verdades em todos os campos da nossa existência.

A verdade de ser conhecida.

A verdade é uma maneira de viver, e não algo que exista fora de nós mesmas. É ser honesta, direta e transparente, bem como respeitar completamente aqueles de cujo apoio nós dependemos. Se a nossa atenção estiver focalizada no modo como os outros nos veem, não teremos possibilidade de conhecer nossos próprios corações. Se nos tornarmos Objetos de Desejo, esqueceremos como ser Sujeitos dos nossos próprios desejos. Ou cuidamos de nossa imagem, tentando fazer com que as coisas ocorram do modo que desejamos por meio de subterfúgios e ardis, ou atendemos aos nossos desejos e nos arriscamos, sem nos importar com o modo como seremos recebidas.

O metafísico renascentista Paracelso disse que nós não podemos amar algo sem conhecê-lo, nem conhecer algo sem amá-lo. Quando nos sentimos profundamente amadas, sabemos que houve autenticidade na relação, que fomos fiéis a nós mesmas na presença do outro e que a nossa verdade foi totalmente acolhida e aceita. Quando dizemos a verdade a um parceiro ou amigo, colocamo-nos realmente numa posição vulnerável, arriscamo-nos a ser julgadas, culpadas ou rejeitadas. No entanto, quando ocultamos a verdade para nos proteger e projetar uma certa imagem, talvez tenhamos uma ilusão de controle, mas perdemos a oportunidade de sermos conhecidas como realmente somos, e, portanto, de sermos amadas.

Meu objetivo ao escrever este livro é iluminar o caminho acidentado que leva da compulsão oculta por ser desejada à responsabilidade por nossos próprios desejos, e finalmente ao conhecimento e à sabedoria que nascem da capacidade de enxergar nossas próprias limitações e dependências. Quando não ficamos agarradas à necessidade de sermos vistas de uma determinada maneira e aprendemos a dizer a verdade com o coração aberto, descobrimos que quase nada parece impossível — não porque controlemos tudo, mas porque descobrimos como depender positivamente dos outros, como mudar quando é necessário mudar e, o mais importante, como sentir menos vergonha, menos inveja, menos culpa, menos solidão, menos medo.

 

REFERÊNCIA:

YOUNG-EISENDRAT, Polly. A mulher e o desejo: muito mais que a vontade de ser querida. Tradução de Lea Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 10-24.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Histórias de príncipes, cavaleiros e princesas apelam às nossas imagens arquetípicas para nos trazer os fundamentos. Desde estes fundamentos podemos olhar para nós mesmos no presente, na nossa contemporaneidade, e nos perguntarmos:

Já somos mulheres livres e autodeterminadas?

Qual o preço que pagamos ou evitamos pagar por essa liberdade?

Esse texto nos ajuda a refletir sobre essas questões trazendo uma história antiga e sua contraposição com a Diana, de Gales, personagem da nossa contemporaneidade. A partir dele podemos aprofundar nossa criticidade quanto a histórica dificuldade das mulheres de terem sua voz e vontade efetivadas em sociedades autoritárias e majoritariamente machistas. Hoje podemos e devemos reforçar o direito de qualquer mulher e de qualquer cidadão atual a expressar e ter respeitada a sua expressão livre e consciente.

Estamos praticando e garantindo a garantia de nossa palavra livre e sincera, e da liberdade e sinceridade alheia, desembaraçados das convenções sociais e históricas como Lady Ragnell o está na história que lemos?

Boa pergunta!!