Dançar no fim do mundo: sobre encontros de amizade significativos

UMA VALSA NO FIM DO MUNDO

por Paula McDonald

Os antigos chineses acreditavam que o mundo acabava no extremo sul da ilha de Hainan, uma floresta quente e úmida infestada de mosquitos, no sul do Mar da China. Para aguentar o caminho até lá era preciso força e coragem, além de uma dose de sorte.

Eu fazia parte de uma equipe de voluntários americanos que fora a China inventariar sua vida selvagem rara. Depois de ter explorado as montanhas e florestas tropicais do Sul, e de ter entrado em contato com a China rural dos camponeses e das pequenas populações, que os turistas raramente vêm, eu e uma de minhas companheiras de viagem, Joanne Turnê, quisemos ver mais. Quando a expedição terminou, Joanne esticou o dedo em cima de um mapa e arriscou: “A ilha de Rainan?”

Encolhi os ombros e sorri: “Por que não?”.

Resolvemos ir de ônibus até a costa, uma viagem de 560 km através das montanhas. Hoje, essa ilha está mais desenvolvida e é mais acessível. Em 1987, porém, entrar naquele ônibus era como partir para uma viagem sem volta para fora do século XX. Um amigo chinês nos ajudou comprar as passagens e, sacudindo a cabeça, desejou nos boa sorte.

Como qualquer ônibus de um país do terceiro mundo, o nosso ia apinhado de gente, bagagens e animais até o teto. Uma vez a caminho, chocalhamos lá dentro durante um dia, uma noite e mais um dia. Depois, andamos em vários barcos, grandes e pequenos, em sampanas, e em riquixas puxados por bicicleta simples e motorizadas. Por fim, atingimos Tian Ya Hai Jiao (em chinês, Fim do Mundo), a praia rochosa que forma a ponta mais Meridional da ilha de Hainan.

Numa povoação fora da praia deserta, paramos para comer numa pequena casa a beira da estrada — na verdade uma choupana, uma daquelas cabanas de um só cômodo que servem de habitação, restaurante e minizôo, combinação habitual no interior da China.

Aquela era particularmente pequena e pobre, mesmo para os padrões rurais chineses. Internamente só tinha uma mesa de madeira sem nada em cima, uma cama também de madeira, sem colchão e várias gaiolas cheias de cobras de 2 metros e 3 metros. Uma velha bicicleta jazia pendurada na parede. Nada mais decorava aquele espaço, exceto alguns cartazes de aspecto oficial já rasgados e a fotografia esbatida de uma criança, cortada de uma revista qualquer.

Uma mulher de cerca de 80 anos, que parecia ser a dona da casa, e uma jovem ajudante, começaram imediatamente a nos mostrar as cobras, retirando os das gaiolas e passando-as para nós duas, uma a uma. Qual delas queríamos para o almoço? Por meio de gestos, tentamos dizer que estava muito quente, que afinal não tínhamos fome e que as cobras eram enormes, o que seria um desperdício. Uma velha galinha que debicava na borda da estrada empoeirada parecia também fazer parte da casa, de modo que apontamos para ela como a querer perguntar se a podíamos comer. Com um acenar de cabeça, o cardápio ficou decidido.

Vinte minutos depois, a comida começou a chegar e nos maravilhamos com o talento do chinês rural de cozinhar uma variedade infinda de pratos deliciosos praticamente a partir do nada. Houve a habitual sopa mistério, seguida de vários pratos de vegetais, todos diferentes e todos acompanhados de minúsculas lasquinhas de galinha. E, claro, havia arroz e um nunca mais acabar de chávenas de chá fumegante, apesar da temperatura ambiente rondar os 38 °C.

Durante a refeição, a velha senhora nunca deixou de me dirigir um sorriso e de abanar com um maravilhoso leque, totalmente feito de penas cinzentas e castanhas. Nunca na vida eu vira um como aquele, mas não havia mais nada na choupana, nem sequer uma muda de roupa, e – dado que o leque parecia ser seu bem mais valioso, além de um velho relógio, – tive o cuidado de não evidenciar demasiado a minha admiração. É que a tradição chinesa manda que se ofereça aos hóspedes o que eles admirarem.

Talvez por estar exatamente tentando não denunciar meu fascínio pelo leque, o que aconteceu a seguir me pegou completamente de surpresa. Sem nenhum motivo aparente a velha senhora, dando-me um largo sorriso, abraçou me efusivamente, entregou-me o leque, tornando a me abraçar. Fiquei estupefata. O que a levará a fazer aquilo? O que poderia eu, uma estranha, ter feito para merecer tal presente?

Alguma coisa mudará radicalmente naquele pequeno cômodo a velha senhora sentou-se, sorrindo extasiada, como se eu lhe tivesse proporcionado uma enorme alegria, para mim inimaginável. Por mais que tentasse, não percebia por quê.

Em vista do presente, deixamo-nos ficar por mais tempo, bebendo chá, apesar do hábito chinês de comer e partir. Desde a minha entrada naquela casa que sentira uma forte atração por aquela velhinha sorridente e feliz. Não tinha pressa de me ir embora.

A momentos na vida em que, em algum lugar do mundo, nasce de repente, entre duas pessoas, uma ligação inesperada, poderosa, irresistível. Aquele foi um desses momentos.

Passado alguns minutos, a mulher mais jovem nos deixou para ir tratar de outras lides domésticas. Sozinha conosco, a velha senhora começou então a falar num inglês hesitante, uma língua que, obviamente, não falava há décadas. Nós nos esforçamos ao máximo para entender suas palavras vacilantes e, a pouco e pouco, ficamos sabendo de sua história. “Estou tão feliz… As senhoras estão aqui. Fazem me lembrar… Há tanto tempo.” 

Éramos os primeiros ocidentais que ela via há quase 30 anos e nossa chegada fez-lhe recordar o passado. O pai fora diplomata, contou-nos. Ela tivera uma infância privilegiada e aprendera inglês, quer em casa, quer viajando com os pais.

Com os olhos brilhando, falou-nos então da recordação mais vívida de sua juventude, quando fora autorizada a acompanhar os pais numa recepção diplomática em Hong Kong, onde se encontravam muitos convidados ocidentais. Naquela noite, a música era internacional e o salão de baile estava repleto de lindos vestidos e da música… a mais encantadora que já ouvira. Sobre as luzes faiscantes, mulheres atraentes e homens muito elegantes dançavam a valsa. Para a jovem chinesa, tudo aquilo era um espetáculo maravilhoso, inesquecível. Um dia, pensara, quando crescesse, iria ser como uma daquelas graciosa as mulheres que valsavam. Tinha certeza!

Mas a China onde ela cresceu já não era um país onde se dançasse. Pouco depois de seu casamento, a nação dividiu-se em duas numa guerra civil entre nacionalistas e comunistas, estes liderados por Mao Zedong. A seguir foi invadida e ocupada pelos japoneses, em 1937, e depois devastada por nova guerra civil. Em maio de 1949, Xangai caiu em poder dos comunistas, depois de um cerco que durou um mês. Seu marido, um oficial do Exército nacionalista, foi um dos últimos a se render. Ela viu-o, e a seus homens, partirem para os campos de prisioneiros. Nunca mais soube dele. A única recordação com que ficara do marido fora o velho relógio que ainda usava, embora já não funcionasse há anos.

Os comunistas exerceram represálias sobre aqueles que tinham apoiado os nacionalistas. Ela foi deportada para ilha de Hainan, antigo local de exílio na China. Vivia naquele ponto isolado há anos, sobrevivendo o melhor que podia, cozinhando, vendendo os animais que conseguia apanhar.

Sorriu. Era o sinal prosaico de sua história, contada sem azedume. Apesar de tudo que perdeu, parecia verdadeiramente não guardar rancor. “E arrependimentos?”, perguntamos com um sorriso.

Apenas um, respondeu ela com sua expressão doce — nunca ter aprendido a valsar.

Levei os momentos para apreender aquilo. Depois de todas as vicissitudes por que passara, sua grandeza de espírito era esmagadora. Quebrando o longo silêncio que se seguiu, peguei sua mão por cima da mesa e perguntei, suavemente, se ainda gostaria de aprender. Ali mesmo. Naquele momento. O raio de luz que perpassou seu rosto foi a resposta. “Sua figura me fez lembrar… quando entrou… a mulher que eu vivo almoçando”, balbuciou ela.

Levantamo-nos ao mesmo tempo e dirigimo-nos para o nosso “salão de baile”, um espaço livre de metro e meio de sujidade endurecida entre a mesa e a cama. “Meu Deus, fazei que me lembre de uma valsa, uma valsa qualquer”, implorei, “e recorde como conduzir uma dama.”

Começamos hesitantes, eu trateando Strauss e pisando nos dedos de seus pés. Mas rapidamente ganhamos desenvoltura, harmonia, vivacidade. O Danúbio Azul começou a soar mais alto e encheu a minúscula choupana. As calças muito largas de seu traje transformaram-se numa saia esvoaçante, e ela outra vez jovem e bela, foi transportada para longe de seu destino no Fim do Mundo.

Por fim nos sentamos, exaustas, mas radiantes. Para acessar aquele momento, tiramos fotografias. Segundo o costume chinês, porém, chegara a altura de nos retirarmos. Procurei alguma coisa que lhe pudesse deixar. Meu pequeno ventilador portátil, com as pilhas gastas, ser-lhe-ia tão inútil como já o era para mim, meu lenço de pescoço cor de alfazema chamaria as atenções sobre ela, podendo desagradar as autoridades chinesas e talvez até colocá-la em má situação. Procurei dinheiro para pagar o almoço, tentando não embaraçá-la, e consegui quadruplicar a conta. Demos um abraço de despedida e partimos.

Depois de mais alguns dias na ilha, Joanne e eu encetamos a viagem de volta até a agitada e moderna Guangzhou, e ali nos separamos.

Nunca cheguei a saber o nome daquela senhora. O tempo que passamos juntas foi muito curto, mas a lição que aprendi com ela foi profunda. A vida privilegiada que tivera fora varrida pela mão brutal do comunismo. Estava só, no fim da vida, sem sequer ter o conforto do respeito e da veneração que as famílias chinesas tão prodigamente dispensam aos mais velhos. E, no entanto, não guardava rancor. Esquecera tudo o que perdera para aceitar o pouquíssimo que lhe restara. Era nitidamente uma mulher feliz.

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Não muito depois de regressar da China, comecei a passar por uma série de adversidades: um divórcio, a morte de minha mãe, alterações em minha situação financeira, a mudança para outra cidade, longe dos amigos e dos ambientes familiares. Senti fortemente a nostalgia de meu passado.

Nos momentos de desespero, procurava fosse o que fosse para me dar alento. E encontrei-o recordando aquela mulher da ilha de Hainan. Também eu dominei as adversidades que julguei nunca poderia ultrapassar.

Vivo agora na costa do Pacífico, virada para a China, e às vezes, quando me lembro daquele dia e faço um esforço, quase consigo ouvir a valsade Strauss.

O retrato da velha senhora — o nosso retrato — está pendurado em minha parede. De mãos dadas somos duas estranha sorridentes vindas de mundos diferentes que dançaram numa cabana fumarenta, num local abandonado que visitei por acaso no dia que, no Fim do Mundo, aprendi o que era força e coragem.

REFERÊNCIA:

McDONALD, Paula. Uma valsa no fim do mundo. Seleções do Reader´s Digest. Rio de Janeiro, Editora Seleções Reader´s Digest, n?, mar. 1996. p. 92-96.

COMENTÁRIO de kathy Marcondes:

Este antigo texto contém o frescor da Verdade. Onde a encontramos ela nos emociona. O encontro de duas almas humanas, durante uma vida humana vivida em situações e países tão distintos é, e sempre foi, uma grande lição sobre a riqueza da diversidade cultural e uma pista sobre o melhor de nossa espécie: a capacidade de sentir empatia, compaixão, fraternidade emocionante!

Além de serem de culturas e idades diferentes, nossas personagens descobrem que sonhos de uma pessoa são realidade junto com outra pessoa. Precisamos mais do que gostaríamos, uns dos outros. Ao reconhecermos isso nos abrimos para o enriquecimento de nosso coração que as experiências de nossa Alma numa vida humana, pode nos oferecer. Nos recordamos melhor de como somos luz, sentindo a luz do outro a nos confortar e reconhecer. Terno e simples são os encontros inesquecíveis. Como o delas. Que sejamos capazes de nos encontrar assim, mais e mais vezes na vida!