Sobre perguntas e respostas no judaísmo

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O  QUE  É  UMA  RESPOSTA?

por Nilton Bonder

Uma das características incluídas no estereótipo do judeu é a de que ele constantemente responde a uma pergunta com uma outra pergunta. É o que mostra uma conhecida anedota:

Perguntou um indivíduo a um judeu: 

Por que vocês respondem a uma pergunta sempre com outra pergunta?” 

Ao que rapidamente ele respondeu: ‘E por que não?’

Uma pergunta pode aprofundar outra pergunta e ser, por definição, uma resposta perante a primeira. Na verdade, a pergunta já faz parte do processo de esclarecimento, e o literalista sabe disto. Quem trabalha com textos sabe muito bem que listar questionamentos, mesmo sem necessariamente respondê-los, é dar curso à interpretação. É interessante notar que no milenar currículo das academias rabínicas o estudo dos literalistas, como o já mencionado Rashi, concentra-se na tentativa de compreender, muito mais do que eventuais respostas, as perguntas que eles extraem do texto. Isto se dá pelo fato de reconhecer-se que o literalista cumpre o duplo papel de legitimar o texto, outorgando-lhe sentido absoluto, e de delinear seu limite, dando forma ao vazio que o circunda. 

Desta maneira, podemos teorizar dizendo que os judeus ganharam fama como literalistas e especialistas em “formas”. Isto pode parecer um contrassenso, uma vez que é princípio fundamental da fé judaica não adorar qualquer tipo de forma. No entanto, o literalista sabe que, se, por um lado, não deve perder nunca a perspectiva da essência, por outro sua labuta é feita no campo da convenção. Só assim captura o que de mais fugidio existe: o sentido

Um conto da tradição chassídica, inspirado em raízes orientais, ajuda a compreender melhor esta questão:

Certo homem encontrava-se em profunda busca interior. 

Questionava-se acerca da “verdade” e da natureza da sinceridade. Atormentado por estas questões, resolveu viajar até uma localidade, onde havia um rabino famoso, em toda a região, por sua sapiência. 

Viajou centenas de quilômetros e, ao chegar ao vilarejo, começou a perguntar onde poderia encontrar o rabino. Todos riram-se dele, dizendo: 

– O Reb está em reclusão absoluta há quase vinte anos e você, um estranho, vem aqui e pensa que pode se avistar com ele? 

Mesmo assim, o homem não desistiu. Esperou uma oportunidade em que os imediatos do rabino se distraíram e conseguiu entrar no escritório onde o velho sábio estudava. 

O rabino custou a perceber que tinha companhia. Lentamente foi tirando os olhos do pesado tomo que estudava e fitou o intruso. 

– Perdão, venerável rabino, venho de muito longe com uma questão que há muito me angustia e que gostaria que o senhor, com toda a sua sapiência, me respondesse. 

– Qual é a pergunta? – inquiriu o rabino delicadamente, mas demonstrando um certo desinteresse. 

– Gostaria de saber qual é a essência da verdade. 

O rabino lançou-lhe um olhar profundo, pôs-se de pé e esbofeteou o visitante.

Perturbado e profundamente magoado, o homem enfiou-se numa taverna. Em meio a um choro sentido, pôs-se a beber para esquecer a experiência tão decepcionante. 

Um jovem da região, sabendo do que ocorrera, aproximou-se oferecendo ajuda. 

– Obrigado – reagiu o homem -, não foi nada… é que vim de bem longe com uma pergunta muito importante e fui recebido assim pelo seu Reb. 

– O Reb não faria isto à toa. Deve haver uma explicação – ponderou o jovem. 

Um homem que escutava a conversa retrucou decidido: 

– Ele o esbofeteou para que você aprenda a não trocar uma boa pergunta por uma resposta

É parte fundamental de qualquer busca, saber ser um literalista. 

Fazer isto é definitivamente não se afastar das perguntas, mas permanecer em seu reino, retirando delas tudo que oferecem de qualidade esclarecedora e redentora de sentido. Retomando o exemplo do antigo programa de televisão, quem busca apenas uma resposta é como o indivíduo que toma decisões dentro de uma cabine que o impede de entender em que tipo de transação se encontra envolvido. Responder é um ato que, se não for cercado de muitos cuidados, pode fazer avançar a escuridão e a ignorância. Pode levar a se trocar o que há de mais importante pelo supérfluo, sob o domínio de uma arrogante certeza que é, em si, mais obscura que a própria ignorância. 

Assim sendo, uma das maneiras mais seguras de se reagir a uma pergunta é fazer outra pergunta. Saber como fazê-la, não ficando na esfera da redundância, mas aprofundando a primeira pergunta, é algo extremamente difícil e que exige uma aguçada sapiência. 

Diante de uma indagação, pergunte-se mais e mais. Com isso, consegue-se extrair o aparente do aparente. A forma se mostra assim com toda a sua clareza, com todas as suas nuanças e contornos, e acaba por revelar a própria essência

Saber é propositalmente não querer ver, até que aquilo que é visto possa contribuir com algo, possa somar, em vez de diminuir.

REFERÊNCIA

BONDER, Nilton. O que é uma resposta. In: O segredo judaico de resolução de problemas. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p. 28-31

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Para quem trabalha com psicoterapia poucos textos da tradição judaica podem ser mais profícuos que esse maravilhoso livro do Rabino carioca, Nilton Bonder. Escrito numa linguagem um tanto hermética (mas nada impossível de entender) para quem é iniciante na leitura da cabala judaico, este livro exige fôlego para ser atravessado. Porém, aqueles que o atravessarem, sairão completamente transformados no jeito de escutar uma história, um paciente, um discurso científico ou místico. Esse é um daqueles textos seminais que “ensinam o pulo do gato” e indicam o caminho para quem “um pingo é letra”. Os níveis de atenção aos significados vão se sucedendo numa apresentação magnífica, onde a seleção de histórias feitas pelo autor, vai contando – simultaneamente as suas colocações precisas – uma parte mais importante para quem lê, e lê: a imagética que esclarece para além do que as palavras dizem. Neste trecho acima temos uma amostra da profundidade do autor, das histórias que escolhe e dos temas desse livro.

“Saber”, ou seja, conhecer com consciência, com sentido, ver e ver, sentir e agir de acordo, não pode ser fruto – dentro do pensamento judaico – de uma fortuita aquisição de informações. Quem é sábio quer contruibuir e sabe dentro de sua própria forma de afetar-se com o que sabe, se comprometendo de tal forma que seu saber contribua para a Vida, para a sua Graça e curso. A total e absoluta fidelidade a Deus, no judaísmo ensinado nesse texto, é a antítese de uma submissão acéfala ou dogmática. Deus está na raíz essencial de todos os desdobramentos (a criação) e participar desse desdobramento como criatura é, sobretudo, estabelecer relações com tudo. Resulta desse entendimento a gratidão que se demonstra usufruindo a vida. Para alguns esse usufruto pode parecer, até, obediência cega. Mas, não é assim que enxerga a tradição o judaísmo esclarecido de Nilton Bonder. O saber-se num mundo criado é saber-se em relação e experiência co-participativa. A memória, no judaísmo, evoca justo essa precedência relativa; e é, também, usufruto da graça e do transcurso. Quem sabe-se assim não usa o saber para interferir por si, para possuir e comandar ou aproveitar-se do conhecimento. Quem sabe reparte, rememora e amplia para permitir a continuidade da tradição.

A pergunta genuína, que é um espanto frente a aparência, contém a reverência ao oculto do oculto, que se transliterou em aparência de oculto, no oculto da aparências a qual acessamos pela aparência da aparência que questionamos para ver. Bom quebra-cuca, não? Vale atravessar a leitura toda do livro e aprender ouvir para além dos sons das palavras. Em psicoterapia essa é a diferença entre o “enrolo” e a cura.