Além do materialismo espiritual

por Chögyam Trungpa

 INTRODUÇÃO

O percurso correto do caminho espiritual é um processo muito sutil e não alguma coisa a que possamos atirar-nos ingenuamente. Existem numerosos desvios que levam a uma distorção egocentrada da espiritualidade; podemos iludir-nos imaginando que estamos nos desenvolvendo espiritualmente quando, na verdade, não fazemos senão fortalecer nosso egocentrismo por meio de técnicas espirituais. A essa distorção básica pode dar-se o nome de materialismo espiritual.

[Neste texto apresentamos o] enfoque budista clássico – não no sentido formal, mas no sentido de mostrar o cerne do enfoque budista da espiritualidade. Apesar de não ser teísta, o caminho budista não contradiz as disciplinas teístas. As diferenças entre os caminhos são mais uma questão de ênfase e de método. Os problemas básicos do materialismo espiritual são comuns a todas as disciplinas espirituais. O enfoque budista começa com a nossa confusão e o nosso sofrimento, e atua no sentido de destrinchar sua origem. O enfoque teísta começa com a riqueza de Deus e atua no sentido de elevar a consciência de modo que ela experimente a presença de Deus. Todavia, dado que os obstáculos ao relacionamento com Deus são as nossas confusões e negatividades, o enfoque teísta também precisa lidar com elas. O orgulho espiritual, por exemplo, causa tantos problemas nas disciplinas teístas quanto no Budismo.

De acordo com a tradição budista, o caminho espiritual é o processo de atravessar e superar a nossa confusão, de descobrir o estado desperto da mente. Quando este estado se encontra entulhado pelo ego e pela paranóia que o acompanha, assume o caráter de um instinto subliminar.  Dessa forma, não se trata de construir o estado desperto da mente, mas sim de queimar as confusões que o obstruem. No processo de consumir as confusões, descobrimos a iluminação. Se o processo fosse outro, o estado desperto da mente seria um produto dependente de causa e efeito e, assim, passível de dissolução. Tudo o que é criado, mais cedo ou mais tarde, tem de morrer. Se a iluminação fosse criada dessa maneira, haveria sempre a possibilidade de o ego reafirmar-se, provocando um retomo ao estado de confusão. A iluminação é permanente porque não a produzimos; apenas a descobrimos.

Na tradição budista, a analogia do Sol que surge por trás das nuvens é frequentemente empregada para explicar o descobrimento da iluminação. Na prática da meditação, removemos a confusão do ego a fim de vislumbrar o estado desperto. A ausência da ignorância, da sensação de opressão, da paranoia, descerra uma visão fantástica da vida. Descobrimos um modo diferente de ser.

O cerne da confusão é o fato de o homem ter um senso de ego que lhe parece contínuo e sólido. Quando ocorre um pensamento, uma emoção, ou um evento, há o sentido de que alguém tem consciência do que está acontecendo. Você sente que você está lendo estas palavras. Esse senso do eu, na realidade, é um evento transitório, descontínuo, que em nossa confusão parece perfeitamente estável e contínuo. Como tomamos por real a nossa visão confusa, lutamos para manter e incrementar esse eu sólido. Tentamos alimentá-lo com prazeres e escudá-lo contra a dor. A experiência ameaça continuamente revelar-nos nossa transitoriedade, de modo que lutamos continuamente para encobrir qualquer possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condição. “Mas”, poderíamos perguntar, “se a nossa verdadeira condição é um estado desperto, por que nos ocupamos tanto em evitar que tornemos consciência disso?” Porque estamos tão imersos em nossa confusa visão do mundo que consideramos real o único mundo possível. Essa luta por manter o senso de um eu sólido e contínuo é obra do ego.

O ego, contudo, consegue apenas sucesso parcial em sua tentativa de defender-nos do sofrimento. É a insatisfação que vem junto com a luta do ego que nos inspira a examinar o que estamos fazendo. E, uma vez que sempre existem hiatos na consciência que temos de nós mesmos, toma-se possível algum discernimento.

Uma interessante metáfora empregada no Budismo tibetano para descrever o funcionamento do ego é a dos “Três Senhores do Materialismo“: o “Senhor da Forma”, o “Senhor da Fala”, e o “Senhor da Mente”. Na discussão que se segue sobre os Três Senhores, as palavras “materialismo” e “neurótico” dizem respeito à ação do ego.

O Senhor da Forma refere-se à perseguição neurótica do conforto físico, da segurança e do prazer. Nossa sociedade altamente organizada e tecnológica reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico de modo a nos salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisíveis da vida. Elevadores acionados por botões de comando, carne empacotada, ar condicionado, privadas com descarga de água, velórios particulares, planos de aposentadoria, produção em massa, satélites meteorológicos, máquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregos das nove às cinco, televisão – tudo são tentativas de criar um mundo controlável, seguro, previsível e prazeroso.

O Senhor da Forma não significa as situações de vida em si que criamos para serem fisicamente ricas e seguras. Refere-se, antes, a preocupação neurótica que nos impele a criá-las, a tentar controlar a Natureza. O ego ambiciona assegurar-se e entreter-se, buscando evitar todo e qualquer irritação. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e propriedades, tememos mudanças ou forçamos mudanças, tentamos criar um ninho ou um playground.

O Senhor da Fala tem a ver com o emprego do intelecto no relacionamento com o mundo. Adotamos grupos de categorias que servem como alavancas, como meios para manipular fenômenos. Os produtos mais plenamente desenvolvidos dessa tendência são as ideologias, os sistemas de ideias que racionalizam, justificam e santificam nossas vidas. Nacionalismo, comunismo, existencialismo, Cristianismo, Budismo — todos nos proporcionam identidades, regras de ação e interpretações de como e por que as coisas acontecem como acontecem.

Aqui, novamente, o emprego do intelecto não é em si mesmo o Senhor da Fala. O Senhor da Fala indica a inclinação do ego a interpretar o que quer que seja ameaçador ou irritante de modo a neutralizar a ameaça ou transformá-la em algo “positivo” do ponto de vista do ego. O Senhor da Fala refere-se ao uso de conceitos como filtros que nos resguardam de uma percepção direta do que é. Os conceitos são levados demasiado a sério; são utilizados como instrumentos para solidificar o nosso mundo e a nós mesmos. Se existe um mundo com coisas a que se possa dar nomes, então o “eu”, como uma das coisas nomeáveis, também existe. Nosso desejo é não deixar espaço algum para dúvidas ameaçadoras, para a incerteza ou a confusão.

O Senhor da Mente refere-se ao esforço da consciência em conservar a percepção de si mesma. O Senhor da Mente impera quando usamos disciplinas espirituais e psicológicas como meios de conservar a consciência que temos de nós mesmos, de nos agarrar ao senso de eu. Drogas, ioga, orações, meditação, transes, várias psicoterapias –  tudo pode ser usado com essa finalidade.

O ego é capaz de converter tudo para seu uso próprio, inclusive a espiritualidade.

Se aprendemos, por exemplo, uma técnica de meditação dentro de uma prática espiritual particularmente benéfica, o ego se põe, primeiro, a tratá-la como um objeto de fascinação e, depois, a examiná-la. Por fim, visto que o ego é sólido apenas na aparência e não pode, de fato, absorver coisa alguma; só é capaz de arremedar. Em tais circunstâncias, ele procura examinar e imitar a prática da meditação e o modo de vida meditativo. Depois de aprendermos todos os truques e todas as respostas do jogo espiritual, tentamos imitar automaticamente a espiritualidade, já que o envolvimento verdadeiro exigiria uma completa eliminação do ego, e a última coisa que desejamos fazer é renunciar completamente a ele. Entretanto, não podemos experimentar aquilo que estamos tentando imitar; podemos apenas encontrar alguma área dentro dos limites do ego que pareça ser a mesma coisa. O ego traduz tudo em termos do seu próprio estado de saúde, de suas qualidades intrínsecas. Experimenta um sentido de grande realização e excitação quando consegue criar um modelo desse tipo. Finalmente criou um feito tangível, uma confirmação de sua própria individualidade.

Se formos bem-sucedidos em manter a consciência que temos de nós mesmos através de técnicas espirituais, o desenvolvimento espiritual autêntico será altamente improvável. Nossos hábitos mentais se tomam tão fortes que fica difícil penetrá-los. Podemos até chegar ao desenvolvimento totalmente demoníaco da completa “Egoidade”.

Embora o Senhor da Mente detenha o maior poder para subverter a espiritualidade, os outros dois Senhores podem também reger a prática espiritual. O retiro no seio da Natureza, o isolamento, a gente simples, sossegada, digna — tudo pode ser meio para nos proteger da irritação, tudo pode ser expressão do Senhor da Forma. Ou talvez a religião nos forneça uma racionalização para criarmos um ninho seguro, um lar singelo, mas confortável, para conseguirmos um companheiro afável e um emprego estável e fácil.

O Senhor da Fala também se envolve com a prática espiritual. Ao seguir um caminho espiritual, podemos substituir nossas crenças anteriores por uma nova ideologia religiosa, continuando, porém, a usá-la da antiga maneira neurótica. Por mais sublimes que sejam nossas ideias, se as tomamos com excessiva seriedade e as utilizamos para manter nosso ego, ainda assim estaremos sendo governados pelo Senhor da Fala.

Se examinarmos nossos atos, quase todos concordaremos, provavelmente, em que somos governados por um ou mais dos Três Senhores. “Mas”, poderíamos perguntar, “e daí? Isto é simplesmente uma descrição da condição humana. Sim, sabemos que a tecnologia não consegue pôr-nos a salvo de guerras, crimes, doenças, insegurança econômica, trabalho laborioso, velhice e morte; tampouco nossas ideologias nos resguardam da dúvida, incerteza, confusão e desorientação; nem podem as nossas terapias proteger-nos da dissolução dos altos estados de consciência que viermos temporariamente a alcançar ou da desilusão e angústia daí decorrentes. Mas que outra coisa podemos fazer? Os Três Senhores parecem poderosos demais para serem derrubados e não sabemos com o que poderíamos substituí-los.”

Perturbado por essas indagações, o Buda examinou o processo pelo qual os Três Senhores governam. Investigou por que nossas mentes os seguem e se não havia um outro caminho. Descobriu que os Três Senhores nos seduzem criando um mito fundamental: o de que somos seres concretos. Todavia, o mito, em última análise, é falso, uma imensa burla, uma fraude gigantesca, a raiz do nosso sofrimento. Para fazer essa descoberta, ele precisou romper as defesas muito complexas erguidas pelos Três Senhores, com o fim de impedir que seus súditos descobrissem o engano fundamental que é a origem do poder deles. Não poderemos, de maneira alguma, livrar-nos do domínio dos Três Senhores a menos que nós, também, cortemos e atravessemos, camada por camada, as suas complexas defesas.

As defesas dos Senhores são criadas com material das nossas mentes, que eles utilizam para preservar o mito básico da solidez. A fim de enxergar por nós mesmos como este processo funciona, precisamos examinar nossa própria experiência. “Mas como,” podemos perguntar, “haveremos de conduzir este exame? Que método ou instrumento vamos usar?”

O método descoberto pelo Buda foi a meditação.

Ele verificou que lutar para encontrar respostas não surtia efeito. Só quando havia brechas na sua luta é que lhe acudiam discernimentos. Começou a dar-se conta de que existia dentro de si uma qualidade sadia e desperta que só se manifestava na ausência de luta. Por isso, a prática da meditação implica “deixar ser”.

Tem havido uma série de ideias errôneas acerca da meditação. Algumas pessoas a consideram um estado mental semelhante a um transe. Outras pensam nela em termos de treinamento, no sentido ginástica mental. A meditação, contudo, não é nenhuma dessas coisas, embora lide com estados mentais neuróticos. Não é difícil nem impossível lidar com tais estados.  Eles têm energia, pressa e um certo padrão. A prática da meditação implica deixar ser – uma tentativa de acompanhar o padrão, uma tentativa de acompanhar a energia e a velocidade. Dessa forma, aprendemos como lidar com esses fatores, como relacionar-nos com eles, não no sentido de fazê-los amadurecer como gostaríamos, mas no sentido de conhecê-los como são e de trabalhar com o seu padrão.

Há uma história sobre o Buda em que se conta como ele, de uma feita, transmitiu ensinamento a um famoso tocador de citara que desejava estudar meditação.

Perguntou o músico:

“Devo controlar minha mente ou devo deixá-la completamente solta?”

 O Buda respondeu:

“Visto que você é um grande músico, diga-me

como afinaria as cordas do seu instrumento.”

Disse o músico:

“Eu não as deixada ficar nem demasiado retesadas nem demasiado frouxas.”

“Da mesma forma,” acudiu o Buda, “na sua prática da meditação você não deve impor nada com demasiada força à sua mente, nem deve permitir que fique ao léu.”

Eis aí o ensinamento de como deixar a mente ser de um modo bastante aberto, de como sentir o fluxo da energia sem tentar sujeitá-lo e sem deixar que ele se descontrole, de como acompanhar o padrão da energia da mente.

Essa é a prática da meditação.

Tal prática se faz necessária, via de regra, porque o padrão do nosso pensamento, o nosso modo conceitualizado de conduzir a vida, ou é demasiado manipulativo, impondo-se ao mundo, ou completamente desgovernado e sem controle. Por conseguinte, nossa prática da meditação precisa começar com a camada mais superficial do ego, com os pensamentos discursivos que estão sempre a atravessar-nos a mente, com a nossa tagarelice mental. Os Senhores empregam o pensamento discursivo como a sua primeira linha de defesa, como peões, em seu esforço para iludir-nos. Quanto mais geramos pensamentos, tanto mais ocupados nos tomamos mentalmente e tanto mais nos convencemos da nossa existência. Desse modo, os Senhores estão constantemente tentando ativar esses pensamentos, tentando criar uma constante sobreposição de pensamentos, para que nada mais se possa ver além deles. Na verdadeira meditação não existe a ambição de suscitar pensamentos, e tampouco existe a ambição de suprimi-los. Permite-se apenas que ocorram espontaneamente e se tornem a expressão de uma sanidade básica. Eles se tomam a expressão da precisão e da clareza do estado desperto da mente.

Se for vazada a sua estratégia de estar sempre criando pensamentos sobrepostos, os Senhores, entalo, agitam emoções para distrair-nos. A qualidade excitante, colorida e dramática das emoções nos prende a atenção como se estivéssemos assistindo a um filme absorvente. Na prática da meditação não encorajamos as emoções nem as reprimimos. Vendo-as com clareza, deixando que sejam como são, não mais permitimos que sirvam de meios para nos entreter e distrair. Dessa maneira, elas se tomam a energia inexaurível que executa a ação sem ego.

Na ausência de pensamentos e emoções, os Senhores introduzem uma arma ainda mais poderosa, os conceitos. A rotulação dos fenômenos cria a sensação de um mundo sólido e definido de “coisas”. Um mundo estável reassegura que somos, igualmente, uma coisa sólida e contínua. O mundo existe e, portanto, eu, que o percebo, também existo. A meditação implica ver a transparência dos conceitos, de sorte que a rotulação já não serve como meio de solidificar o nosso mundo e a nossa imagem do eu. A rotulação passa a ser, simplesmente, ato de discriminação. Os Senhores ainda têm outros mecanismos de defesa, mas seria por demais complicado discuti-los no presente contexto.

Mediante o exame dos seus próprios pensamentos, emoções, conceitos e demais atividades mentais, o Buda descobriu que não precisamos lutar para provar nossa existência, não precisamos ficar sujeitos ao jugo dos Três Senhores do Materialismo.

Não há necessidade de lutar para sermos livres; a ausência de luta, em si mesma, é liberdade.

Este estado desprovido de ego é a realização da Natureza Búdica. O processo de transfomar o material da mente para que deixe de ser expressão da ambição do ego e passe a ser, por meio da prática da meditação, expressão da sanidade básica e  da iluminação – eis o que poderíamos chamar de verdadeiro caminho espiritual.

REFERÊNCIA:

TRUNGPA, Chögyam. Além do materialismo espiritual. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 9-13.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Este texto, escrito em 1970, pode ser considerado velho ou atemporal. Escolhamos. Discutir que o materialismo espiritual pode se dar em qualquer religião ou vertente espiritual é de uma coragem e pureza que independe do tempo. Depende do coração. Quem de nós nunca teve de considerar se um de nossos “pedidos” a Deus procedia? Se Deus já sabe de tudo? Se fez todas as “regras”? Se o Seu Amor já nos conhece já não estaria tudo numa espécie de programação? Até nossa própria súplica, procedente ou não. As grandes biografias de fé de nosso mundo sempre relatam esses momentos de dúvida, torpor… é absolutamente humano precisar de um Deus que compreendamos de alguma forma e que nos compreenda, da Sua. Há inúmeros caminhos para se resolver isso e “praticar” a nossa profissão de fé. O autor desse texto, que discute justo a possibilidade de nosso caminho espiritual não ser, afinal, tão espiritual assim e ser mais uma acomodação humana a nossa necessidade de organizar mental e emocionalmente uma “espiritualidade” que nos preencha as dúvidas, é um lama historicamente muito importante. Tendo escapado da invasão da China ao Tibet em 1959, viveu na Índia e, de lá, foi estudar Religiões Comparadas na Universidade de Oxford; acabou fundando o primeiro centro budista tibetano ocidental na Escócia. Convidado a palestrar no Estados Unidos em 1970 acabou atraindo muitos ouvintes interessados no Budismo Tibetano. Lecionou no Colorado e fundou comunidades contemplativas budistas em várias cidades americanas e canadenses. Esse Rinpoche (nome honroso que os tibetanos dão a um lama considerado precioso devido a seu grande conhecimento, compaixão e prática dedicada) é autor de vários textos preciosos, mas essa introdução que lemos acima, já deixa claro o grau de maturidade que precisamos ter para atravessar as implicações da compreensão de seus ensinamentos. Chögyam Trungpa subverte a noção de um guru ou de um mestre como um caminho espiritual, a não ser que faça a o seu discípulo compreender que a prática é o caminho. Não a teoria ou a pessoa do mestre. “As situações são a voz do meu guru, a presença de meu guru” diz na página 24. “A inteligência básica, tathagatagarbha, natureza de Buda está sempre presente em toda a experiência que a vida nos traz. Não há como escapar-lhe.” na página 31. Seu ensinamento aponta para a pureza de uma prática que releve ao praticante a sua natureza búdica e sua possibilidade, portanto, de se comprometer compassivamente com todas as pessoas e seres sencientes.

Como estes ensinamentos ressoam diferentes da meditação como apresentada a massa das pessoas do ocidente na segunda década do século XXI! Assim como tantas práticas orientais (como a Yoga, a Acupuntura, a Medicina Ayurveda, etc…) a meditação segue claramente banalizada por alguns, principalmente pela mídia digital que lhe propõe algum consumo que implique em mercantilização de seus benefícios, mas simplificada como prática destituída ou afastada de seus fundamentos éticos, religiosos, antropológicos e culturais bastante específicos, tornou-se meramente mercadoria. Há inúmeras formas de consumir meditação para trazer algum benefício para o ego. Esse texto, antigo, tradicional e enraizado em um pensamento budista lúcido e nomeado com clareza, mostra o perigo de quem pretende um caminho espiritual fazer esse tipo de consumo egóico e vaidoso. Nada está mais distante da meditação que a vaidade. Mas nada mesmo!!!

A meditação é uma palavra que hoje se refere a uma quantidade imensa de técnicas e abordagens e, realmente, muitos benefícios ótimos a sua prática potencializa. Isso é indubitável. Assim como qualquer alongamento pode fazer bem ao corpo, mas não necessariamente toda a forma de alongar-se é Yoga, acontece com a meditação. Qualquer prática pode trazer benefícios ao ego e nada há de errado nisso, a não ser, chamar benefício ao ego de caminho espiritual. As tradições religiosas, os caminhos esotéricos, a meditação profunda de vertente hindu, budista, mulçumana ou cristã propõem mais do que benefícios ao ego. De uma forma ou outra, para alcançar possíveis benefícios espirituais, o caminho é a superação do ego. O entendimento amoroso e compassivo da condição egóica humana é apenas um passo da superação dessa total identificação com este nível de realidade… e o começo do percurso do caminho espiritual virtuoso… que vai além do ego… ao encontro do outro… além do outro… ao encontro da Vida… além da Vida… ao encontro de Tudo.

Terminemos com outra citação maravilhosa do livro introduzido pelo texto acima, página 161:

“O Caminho do Bodhisattva destina-se aos corajosos e que estão convencidos da poderosa realidade da natureza de tathagata existente dentro deles. Os que foram realmente despertados por uma ideia como a de tathagata estão no Caminho do Bodhisattva, o caminho do bravo guerreiro que confia na possibilidade de completar a jornada, que confia na natureza búdica. A palavra “bodhisattva” significa: “aquele que é bastante corajoso para trilhar o caminho de bodhi”. Bodhi quer dizer “desperto”, “o estado desperto”. Com isto não estamos dizendo que o bodhisattva precisa estar inteiramente desperto; senão que está disposto a seguir o caminho dos despertos.

Esse caminho consiste em seis atividades transcendentais que ocorrem espontaneamente. São eles: a generosidade, a disciplina, a paciência, a energia, a meditação e o conhecimento transcendentais. Essas virtudes chamam-se “as seis paramitas“, porque param significa o “outro lado” ou “margem”, o “outro lado do rio”, e ita significa chegada. “Paramita”, portanto, quer dizer “chegando” ao outro lado, ou margem, o que indica que as atividades do bodhisattva devem ter a visão, a compreensão que transcende as noções centralizadas do ego. O bodhisattva não está tentando ser bom ou gentil, mas é espontaneamente compassivo.” (Chögyam Trungpa).

A beleza de encontrar em civilizações tão distantes da nossa a mesma ternura dos avatares ocidentais… seu jeito poético de usar as palavras para nos fazer ver para além delas… é sempre comovente. Arrebatador. Seja qual for a nossa “praia” espiritual… tenho a impressão de que o Oceano de todas, é o mesmo.