Deus te abençoe e Deus te guarde

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Y’varech’cha  Adonai  v’yishm’recha

“DEUS  TE  ABENÇOE  E  DEUS  TE  GUARDE !”

por Kathy Marcondes

Quando eu era bem pequena, lembro-me perfeitamente, havia um encantamento com o Fim de Ano que envolvia todas as crianças da minha família e da rua do I.B.E.S., um bairro popular de Vila Velha, no estado do Espírito Santo. No Natal o nome de nosso estado parecia fazer mais sentido… Havia uma eletricidade “boa”, uma espera por algo santo, especial, feliz… sobretudo… feliz. Fim de ano, férias, festa, presentes… Não havia coisa mais esperada do que a Caixa de Bombom Garoto que vovô ia comprar “fresquinha”, no bairro Glória, na própria fábrica de chocolate! As negociações de troca entre os netos eram frequentes… quem queria trocar o bombom Serenata podia conseguir até três bombons de banana-passa, o Caribe! Mas a Árvore de Natal de vovô, feita de galhos de goiabeira, não tinha presentes embaixo… porque ele só os comprava mesmo, no dia 24: uma caixa para cada neto… uma preciosidade, “o” Presente de Natal.

O encantamento da árvore era mais duradouro que os bombons: começava no início de Dezembro. Vovô fazia a arrumação simbólica da Árvore de Natal. Cada neto que chegava ia com ele amarrar uma fitinha na ponta dos galhos, enfeitando com esses lacinhos a Árvore daquele ano… podíamos até levar as fitinhas ou escolher a cor entre os pedacinhos que ele tinha. Ficava esplendorosa aquela árvore simples, mas cheia de fitinhas coloridas com que nós mesmos aprendíamos a fazer um laço.

Ao pendurar cada laço vovô recitava de forma solene e emocionada nosso nome e em seguida:

“DEUS TE ABENÇOE E DEUS TE GUARDE”

Crescemos… Alguns mudaram de bairro, de escola, de vida. Mas muitos de nós continuamos amigos até hoje. Outros se foram… de muitas formas diferentes… Família é assim: imperfeita. E, mesmo assim, as boas lembranças e aprendizados de família podem perdurar, iluminar, fazer e dar sentido as coisas… Nas festas de Fim de Ano, na casa de um ou de outro, eu e alguns primos e primas tentamos preservar essa boa lembrança de Natal, manter a “tradição” de vovô, como podemos. Nem sempre conseguimos galhos de goiabeiras…, mas ainda amarramos fitinhas nas novas Árvores de Natal, abençoando o nome de nossas crianças, dizendo-os solenemente e completando com:

“DEUS TE ABENÇOE E DEUS TE GUARDE”.

Num Fim de Ano a mais sapeca delas, a Maitê, saiu perguntando aos adultos da festa:

Por que vocês dizem DEUS TE ABENÇOE E DEUS TE GUARDE toda vez? Por que pedem duas coisas, uma já não é suficiente não?

Rimos, troçamos da situação e uns dos outros, mas… não respondemos. Estávamos impregnados do gesto do vovô, mas não sabíamos direito o porquê ele fazia exatamente daquele solene jeitinho.

Foi um pouco antes do Fim de Ano seguinte a essa pergunta, durante a Pandemia, que descobri, quase por acaso, este segredo.

Remexendo o baú do vovô que ficara esquecido, num lugar qualquer, todos aqueles anos desde a sua partida, achei uma pasta surrada de couro, amarronzada, tranca enferrujadinha. A pasta estava envolta num papel celofane, como que protegida para que pudesse cumprir seu papel de guardar e preservar. Abri, respeitosamente. Dentro certidões, a foto esmaecida do casamento de seus bisavós paternos, um porta-guardanapo oxidado pelo tempo, feito de prata na delicada forma de uma rosa em botão com folhas e espinhos, alguns poucos selos carimbados e recortados de postais e um recorte de jornal. Esse último item me chamou atenção. Notei que era antiquíssimo e gasto de tanto ser desdobrado e relido; havia marquinhas de fungos onde os polegares trêmulos deviam ter segurado o jornal para fazer a leitura. Dentro deste papel havia também um lacinho vermelho igualzinho aos que ele pendurava na nossa Árvore de Natal!

O texto tão bem guardado era algum extrato da tradição judaica, assinado por Rabi Israel Báal Shem Tov. Esse escrito devia ter impressionado muito o vovô para o ter guardado assim, tão cuidadosamente, junto com outros de seus tesouros. Ele não era judeu, muito menos erudito. Até hoje não consigo nem imaginar como aquela sabedoria pode ter chegado nas mãos daquele “pedreiro e carpinteiro” que tinha “ajudado a construir a Cinco Pontes”, mas não há dúvidas que o texto estava associado às fitinhas de Natal e as bênçãos que ele derramava sobre nós.

Nas festividades daquele ano levei uma cópia do texto para os adultos. Nosso avô começara a “tradição” de laços de fita e bênçãos ao nome próprio, com base na sua própria interpretação do que dizia aquele extrato de jornal. Todos nos emocionamos muito ao ler o texto que o inspirara. Lembrei, então, que a pequena Maitê havia perguntado porque dizíamos duas preces: por abençoar e por guardar. Antes daquela descoberta não poderíamos ter respondido sinceramente, corretamente. Só repetíamos vovô. Mas, agora, ali estava a prece completa na nossa frente:

DEUS TE ABENÇOE E DEUS TE GUARDE

é uma expressão de prudência e confiança em Deus.

Rogar uma benção não basta.

Aquele que é abençoado pode cair na armadilha de achar-se muito especial, merecedor de favores divinos e julgar que não precisa se esforçar como todos.

Bênçãos podem trazer prosperidade, o que é bom; bênçãos devem ser humildemente recebidas, o que é bom; mas ainda melhor é rogar que sejamos também guardados delas e protegidos da excessiva prosperidade.

Muito prosperar é um caminho difícil para os que querem manter o coração puro.

Solicitar também a guarda de Deus visa manter o coração longe da avareza, a mente longe do engano da posse material e intelectual e a preservação da oportunidade de partilhar com os outros seres o que de Graça somos e recebemos ser.

Guardados por Deus, nossos próprios dons já são bênçãos.

Guardados por Deus, não nos cremos injustiçados quando a benção que recebemos é a doença ou a dificuldade, a solidão ou o problema.

DEUS TE ABENÇOE E DEUS TE GUARDE

é um pedido prudente, confiante e mais íntegro.

Se você estiver abençoado e prosperando, Mas´l Tóv! (parabéns!), se você estiver guardado, Mizmor l´todá! (prece de agradecer)”.

Com a caligrafia humilde e insegura de meu avô se lia, perfeitamente, abaixo do impresso suas palavras:

“Guardar o que se é, porque isso basta, essa é a bensão, cada um é um, tem um nome, um nome só seu. Isso é bom, isso é divino, isso basta.”

O errinho do cedilha que virou “s” não nos pareceu um erro. Pareceu mais uma marca, uma obra de arte, uma singularidade, nossa benção: um homem simples e sábio havia tentado nos unir, sem nos igualar, nos tinha entregue o seu melhor.

Para que nossas crianças pudessem compreender a intenção do velho Vô que elas não conheceram, resolvemos ali mesmo pedir que dessem as mãozinhas e fizessem uma roda voltada para fora do círculo. Os adultos fizeram uma roda maior em torno delas, de frente para elas. E contamos… e explicamos… e de nosso jeito família, meio rindo, meio atropelados, meio chorando, meio que nos perdoando e, sobretudo, abençoando as crianças (reparei que todos nós nos dirigíamos a elas pelos seus nomes próprios dando a mesma solenidade que já conheciam do momento em que colocávamos as fitinhas na Árvore de Natal). Agradeci a pergunta da Maitê. Ela nada demorou para dizer: ainda bem que vocês estão reconhecendo que pergunta de criança merece sempre resposta”. Elas ficaram muito tempo tagarelando no círculo. Foi surpreendente ver que as crianças, naturalmente mais inquietas, dessa vez não se apressaram em sair da rodinha. Ao contrário… o tempo parecia estar passando diferente para aquela roda de gente… brincamos, literalmente, de roda e só desfizemos aquele mágico momento com outro. Pedimos que cada criança fosse ao centro da roda e lá fechasse os seus olhinhos. Uma a uma elas entravam no centro, fechavam despudoradamente os olhinhos, às vezes com as mãozinhas até, e ouviam solenemente as bençãos dos adultos de sua família: seus respectivos nomes e, depois, ouviam como nós ouvíamos de nosso avô, só agora entendendo melhor cada palavra:

“DEUS TE ABENÇOE E DEUS TE GUARDE”

Tudo voltou a ser festa e gritaria depois. Voltamos a caçoar um do outro, rir e falar alto. A música, nada natalina, e a comilança, nada modesta, rolaram até de madrugada. Por isso acho que foi uma peça que meu cérebro me pregou: ouvia, de vez em quando, o exato som da voz de meu avô chamando uma criança ou outra no meio daquela confusão típica de festa. Claro que olhava na direção da voz e nada via. Mas, sei que ele estava entre nós. Ele nos tinha abençoado e finalmente estávamos ali sendo nós mesmos, usufruindo da verdadeira bênção. Essa seria, doravante, sua maior presença entre nós.

O fato é que foi bom demais relembrar nossa infância tão feliz… com tão poucos bens e tanto bem. Éramos tão felizes. Estamos todos tentando reconquistar essa simplicidade, que é a alegria. No Grupo de WhatsApp da família aquela “esquisitice” da roda, do laço, da benção… é o assunto preferido na distribuição das tarefas… parece que, esse ano, vai ter de novo lacinho, duas rodas e mais alguma coisa! As crianças reivindicam acrescentar outras tarefas para seu pais… Uma nova tradição? Ou será a mesma, nos seus novos moldes? Não sei…, sei apenas que vamos tentar honrar novamente o velho impresso, o sábio avô, a Árvore de Natal e as crianças como são, que é como deveríamos ser… pelo menos nos Fins de Ano.

Que Deus nos abençoe e nos guarde, hoje e sempre. Obrigada, vovô.

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REFERÊNCIA:

MARCONDES, Kathy Amorim. Deus te abençoe e Deus te guie. Disponível em: https://kathymarcondes.com.br/psi/ideia/textos-para-fim-de-ano/deus-te-abençoe-e-deus-te-guie/.