O REI MENINO
por Carlos Drummond de Andrade
O estandarte do Rei não é de púrpura e brocado,
é um lírio flutuante sobre o caos onde ambições se digladiam
e ódios se estraçalham.
O Rei vem cumprir o anúncio de Isaías:
vem para evangelizar os brutos,
consolar os que choram,
exaltar os cobertos de cinza,
desentranhar o sentido exato da paz,
magnificar a justiça.
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Entre Belém e Judá e Wall Street
no torvelinho de negociações equívocos,
a vergasta de luz deixa atônitos os os fariseus.
Cegos distinguem o sinal,
surdos captam a melodia de anjos-cantadores,
mudos descobrem o movimento da palavra.
O Rei sem manto e sem joias,
nu como folha de erva,
distribui riquezas não tituladas.
Oferece a transparência da alma liberta de cuidados vis.
As coisas já não são as antigas coisas
de perecível beleza
e o homem não é mais cativo de sua sombra.
A limitação dos seres foi vencida
por uma alegria não censurada,
graça de reinventar a Terra,
antes castigo e exílio,
hoje flecha em direção infinita.
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O Rei, criança,
permanecerá criança mesmo sob vestes trágicas
porque assim ouvimos e queremos,
assim nos curvamos diante do seu berço
tecido de palha, vento e ar.
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Seu sangrento destino prefixado não dilui
a luminosidade desta cena.
O menino, apenas um menino,
acima das filosofias, da cibernética e dos dólares,
sustenta o peso do mundo
na palma ingênua das mãos.
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REFERÊNCIA:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Receita de ano novo. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 29-31.
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COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:
Os grifos em negrito desse poema são nossos… como se reescrevêssemos uma poesia solitária ao ler um poeta que fala como se tivesse 1000 vozes… como diria Jung. O poeta diz: caos e consolo, não títulos: transparência, alma liberta das coisas, direção (lugar) infinita (intensidade, sem conta), assim e assim de novo um menino comove o mundo!! A Criança Divina é uma imagem impactante que faz ressoar em nós a inocência e a pureza como forças. Imediatamente o sentido de um presépio, uma “maquete” de um lugar completamente antigo e desconhecido para nossas crianças atuais, se faz mais claro. No presépio o sentido de uma espiritualidade que nasce nos pobres e dos simples, rende-se ao que significado encontrado numa criança e seu devir. Os objetivos romanos de governar sem destruir, para submeter com rendição, ergueu uma religião sobre a imagem de um Deus que se fez menino. Ele até morre na cruz. Mas, no Natal, teimosamente nasce de novo dentro da casa de muitos… séculos e séculos novamente. Quando um poeta canta a ingenuidade de Jesus Menino a sustentar a esperança do mundo nos damos conta da força da pureza e da inocência. Outro gigante, Fernando Pessoa, não por acaso, nos disse que “o melhor do mundo são as crianças”. Penso que Drummond está a nos dizer: o melhor do cristianismo é pensar um Deus menino.