OS ABISMOS DA ALMA

 

 

por Cláudio Antônio de Carvalho Xavier

 

 

Existe uma ideia, muito disseminada nos movimentos esotéricos [e também em escolas espiritualistas cristãs e orientais], de que o ser humano

evolui em progressão ascendente,

de forma retilínea e constante, quando, na realidade, a evolução em geral não ocorre necessariamente dessa forma, mas por etapas, em ciclos ascendentes, observa Joaquim Gervásio de Figueiredo. Podemos encontrar as reminiscências desse pensamento na

escada mística

vista em sonho por Jacó, pela qual subiam e desciam anjos, formando um elo entre o Céu e a Terra. Contudo, se considerarmos o fato de que a evolução humana é uma trajetória de avanços e retrocessos, de quedas e ascensões, de derrotas e conquistas, é possível que o antigo símbolo maçônico da escada em caracol ou espiral, também mencionada na Bíblia (1 Reis 6:8), sirva mais a esse propósito [de ampliar o entendimento da evolução linear a ascendente].

 

A senda espiritual é descrita pelos sábios e instrutores espirituais como um caminho de ascensão gradual da consciência, que também pode ser alegoricamente representado como uma escalada rumo ao topo da montanha. Essa simbologia foi adotada por Annie Besant em sua obra “Do Recinto Externo ao Santuário Interno”, onde a autora descreve uma grande montanha situada no espaço, com um caminho que se desenvolve ao seu redor e em cujo ápice se encontra um Templo majestoso e radiante. É lá que se encontram os Mestres que já terminaram o seu percurso e ali permanecem para auxiliar os que ainda estão subindo.

 

Para a imensa maioria da humanidade, essa subida ocorre em marcha lenta, durante milênios, em uma infindável sucessão de vidas, enquanto alguns poucos conseguem divisar o seu ponto de chegada e despertam o desejo de seguir um percurso mais curto, embora mais escarpado, e assim encontrar o caminho que leva diretamente ao Pátio Externo do Templo, dirigindo-se para a meta. Segundo Annie Besant, as almas que ingressam no Pátio Externo fizeram grande progresso no passado e aceitaram a tarefa que desejam realizar, embora saibam que, apesar dos progressos já obtidos, há ainda um longo caminho a percorrer para eliminar o karma do passado.

 

Para se colocar em contato direto com a Mente Universal, o discípulo deve abandonar tudo o que é temporário, que pertence à personalidade inferior.

Cada ato de sua vida deve ser devotado à construção de sua individualidade,

que transborda a personalidade de uma vida, de modo que sua natureza inferior reconheça sua submissão à superior

e passe a servir como agente ativo e temporário.

A montanha como símbolo de ascensão espiritual é uma alegoria que pode ser encontrada nas mais diversas tradições, mas, no contexto da obra mencionada, a Montanha da Iluminação simboliza a própria senda, ou seja, a Senda do Desenvolvimento Acelerado que leva ao Adeptado, também chamado de Caminho Secreto em “A Voz do Silêncio” – sendo este o verdadeiro caminho oculto, o Caminho da Ciência Secreta referido na Escada de Ouro, descrita pelo Mestre M. para H.P.B.. Este segundo caminho é a porta estreita e apertada a que se referiu Jesus, e é trilhado por meio de uma série de iniciações.

 

O ciclo natural da humanidade segue a senda gradual, a espiral de evolução. Como esclarece Clara Codd, em seu livro “As Escolas de Mistérios”, esse caminho

 

“é a estrada segura para a maioria das almas em crescimento,

descrito por Annie Besant em seu livro

Do Recinto Externo ao Santuário Interno”

 como o caminho em torno da montanha.

Este é o caminho seguro, normal, lento, de crescimento gradual

e desenvolvimento por muitas vidas, e, por conseguinte,

seguido pela maioria dos homens”.

 

Partindo de uma concepção distinta, porém compatível com a visão teosófica, o psiquiatra e psicólogo suíço Carl Jung, ao desenvolver sua teoria sobre o

arquétipo da sombra,

assinala que o processo de renascimento espiritual só é possível quando se mergulha nas camadas mais profundas da psique humana. Essa perspectiva nos sugere que a subida íngreme é, em certa medida, uma descida ao submundo do inconsciente.

 

Para alcançar o cume da Montanha da Iluminação é preciso passar pelo que São João da Cruz chamou de “noite escura da alma“, ou seja, um estado em que a personalidade humana se depara com o desafio de confrontar a si mesma. Muitas experiências religiosas foram precedidas desse estágio de alienação psicológica referida por João da Cruz, e que Jung denominou “derrota do ego“. Na linguagem simbólica dos alquimistas, ele corresponde à fase do processo alquímico chamado Nigredo, o caos que antecede a ordem. É nesse momento que a sombra pode se manifestar com maior intensidade [sem que isso esteja em desacordo com o processo de evolução da Alma].

 

Em termos psicológicos, a[s] experiência[s] da alienação, [da profunda depressão, dúvida, inércia ou descrença desmotivadora

podem ser] vista[s] como prelúdio da experiência numinosa,

pois, estando inconscientemente identificado com o Si-mesmo,

torna-se impossível para o ego

alcançar a experiência do Si-mesmo

como algo distinto.

Como relata Edward Edinger em Ego e Arquétipo,

o ego deve primeiramente perder sua identificação com o Si-mesmo,

para que possa encontrar o Si-mesmo como “o outro”. De acordo com Jung, a sombra é o lado obscuro da natureza humana que se oculta nas profundezas da consciência, em nossa psique, criando uma névoa de ilusão que rodeia o self. É tudo aquilo que reprimimos e repudiamos em nós mesmos. Paradoxalmente,

“a sombra expressa seu poder

fazendo com que a escuridão se pareça com a luz”,

como escreveu Deepak Chopra.

 

Diante dessa constatação, Chopra adverte que a

consciência superior

é a única resposta para o aspecto sombrio da natureza humana.

Isso implica dizer que se deve abandonar qualquer expectativa de derrotá-la, pois a sombra “viceja na guerra, na dificuldade e no conflito”. Tentar derrotar a sombra significa abrir espaço para a dualidade do bem e do mal, quando, na realidade, o bem não tem poder para derrotar o mal, e o self dividido, por sua vez, não pode se fazer pleno.

 

De fato, o lado obscuro ganha mais força quando nos recusamos a reconhecer a dualidade interior. Para superar esse estado há a necessidade de transcender, indo além da dualidade da mente. Ramakrishna disse que, se você pensa apenas em seus pecados, então você é um pecador. Parte da explicação se deve ao fato de que toda experiência da vida resulta de contraste, ou seja, não é possível adquirir experiência na ausência de contraste, o que também implica dizer que

“a alma humana é um lugar

de ambiguidade, contradição e paradoxo”

Deepak Chopra.

Como afirmou Campbell, “céu e inferno estão dentro de nós, e todos os deuses estão dentro de nós”.

 

Seguindo o roteiro de Annie Besant, é interessante notar que as almas que entraram no Pátio Externo, embora já tenham superado as tentações mais corriqueiras da vida terrena, a partir desse estágio deverão se deparar com tentações mais sutis e difíceis de serem identificadas.

O pensamento de Deepak Chopra coincide com o de Annie Besant quando ele afirma que, nesse estágio, o conflito é muito sutil, porque normalmente tendemos a supor que a batalha cósmica entre Deus e Satã precisa ser uma luta titânica, quando, na realidade, ela se opera em planos mais sutis e traz à tona aspectos ocultos da nossa psique, reafirmando a máxima de que

quanto mais forte a luz, maior a sombra“.

E é justamente nesse nível, quando a pessoa já está prestes a experimentar a unidade, que o ego se sente sumamente ameaçado ao constatar a sua inutilidade, o fim de seu domínio. Na visão de Krishnamurti, essa perspectiva também revela que o

eu está escondido dentro de nós.

É preciso cavar para trazê-lo à superfície”.

 

O Evangelho de Felipe joga luz nesse tema quando afirma:

“Enquanto a raiz está escondida, ela brota e cresce.

Se suas raízes são expostas, a árvore seca.”

Assim,

“enquanto a raiz da maldade está escondida,

esta permanece forte”.

 

Comentando o texto, na obra “Os ensinamentos de Jesus e a tradição esotérica cristã”, Raul Branco afirma que

“no inconsciente encontram-se as raízes de nossas limitações, de cada defeito e de cada falha de caráter”.

Em outra de suas obras, “O poder transformador do cristianismo primitivo”, o autor esclarece que

“o crescimento espiritual gerado pela purificação

é um processo dinâmico que nunca cessa”.

 

E é precisamente por isso que o verdadeiro aspirante deve se manter atento, procurando explorar, em seu interior, as falhas que porventura ainda existam e que estão profundamente escondidas no inconsciente, buscando superá-las sem jamais se deixar levar [por uma ideia de que seja, já, puro e perfeito, ou seja, pela ideia da] autossatisfação.

 

 

 

 

DESVELAR O INCONSCIENTE

 

Toda essa reflexão conduz à conclusão de que o conhecimento de si mesmo é fundamental no caminho espiritual, pois se considerarmos que, para trilhar o caminho da perfeição, precisamos superar as fraquezas que nos afetam e, como parece evidente, só podemos modificar aqueles defeitos que conhecemos, o conhecimento de si mesmo se torna essencial para que possamos desvelar nosso inconsciente. Em outras palavras, o que Jung estava querendo dizer é que tomar consciência da sombra é a base para qualquer tipo de autoconhecimento, o que também significa dizer que o processo de individuação demanda

o reconhecimento e a integração da sombra na consciência.

 

Empreender a jornada rumo ao lado sombrio é, mais que um ato de extrema coragem, sobretudo uma proeza espiritual, na medida em que se torna imprescindível expor os aspectos ocultos da psique que tanto encobrimos, e, ao mesmo tempo, nos aproximar desses mesmos impulsos e características que abominamos, tornando consciente a sombra. Esse drama é fielmente retratado por Joseph Campbell na “Jornada do Herói”. O herói deve percorrer um longo caminho e passar por muitas provações até ter a sua consciência transformada. A história bíblica de Jonas exprime essa descida às trevas no momento em que o herói é engolido pelo monstro marinho e conduzido ao abismo, para depois ressuscitar. Metaforicamente, a água é um símbolo do inconsciente, e a criatura marinha é a energia do inconsciente que subjugou a personalidade consciente e precisa ser desapossada.

 

Há uma etapa crucial na saga do herói em que ele precisa entrar sozinho na caverna secreta e matar o último dragão. A luta do herói com dragões e outros monstros, que personificam os poderes cósmicos do mal, segundo Raïssa Cavalcanti, “faz parte do complexo simbólico que descreve o processo iniciático ou de individuação”. Em “Mitos da Água”, a autora informa que

“a luta entre o herói e o dragão

é um conhecido tema arquetípico

que simboliza a luta do indivíduo contra as suas próprias tendências negativas e regressivas”.

 

Na Índia védica, Indra mata o dragão, e, na mitologia grega, Apolo mata Píton, a serpente-dragão.

 

Em “O Homem e seus Símbolos”, Jung acentua que o herói

precisa convencer-se de que a sombra existe e que dela pode retirar sua força“. Ou seja: para que o ego triunfe, o herói precisa primeiramente subjugar e assimilar a sombra. Nesse confronto consigo mesmo, o herói é colocado diante de sua própria sombra e se defronta com suas fraquezas, apegos e limitações.

Contudo, é preciso considerar que, para a maioria das pessoas, o lado obscuro da personalidade permanece no inconsciente.

 

Também é importante lembrar que a viagem xamânica começa com a cura do próprio xamã. Para entrar em contato com o mundo invisível, o futuro xamã deve ser capaz de interpretar sua crise patológica como uma experiência espiritual e curar a si mesmo. A partir dessa noção pode–se fazer uma analogia com o mito de Quíron, “o curador ferido”. Diz o mito que, após o seu nascimento, Asclépios foi entregue aos cuidados do velho e sábio centauro, que o teria instruído nos mistérios da medicina e revelado a ele o grande segredo: para curar, o médico precisa entrar em contato com o seu próprio lado ferido.

 

Como afirma Krishnamurti, toda dificuldade reside em nossa incapacidade de subjugar nosso eu egoísta, pois, na realidade, o verdadeiro dragão está dentro de cada um, impedindo o acesso ao mundo interno de possibilidades criativas, isto é, o seu próprio ego. Desse modo, a vitória sobre o dragão significa a superação dos impulsos, instintos e sentimentos negativos. Isso não significa

“aperfeiçoar a nossa personalidade, pois esta,

por sua própria natureza, permanece, em grande parte, imperfeita e limitada”,

como bem aponta I. K. Taimni em

Autocultura à Luz do Ocultismo”.

 

Na simbologia cristã, a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém, montado num jumentinho, é uma alegoria dessa etapa da jornada. Como escreveu Raul Branco,

“a natureza exterior do homem

deve se tornar inteiramente dócil, humilde e obediente ao seu Senhor, o Cristo interior, para então servir como um veículo apropriado”.

Quando esse evento ocorre,

“o Cristo interior, cavalgando a natureza animal (mortal) exterior, poderá então entrar na cidade sagrada, o Reino de Deus“.

 

Nesse mesmo contexto é dito que o caminho da transformação de si mesmo (metanóia) exige o conhecimento do inconsciente. Porém parece que ainda estamos diante de um impasse, pois o pleno conhecimento do Eu Superior depende de conhecermos nossa natureza inferior e transformá-la em aliada nessa busca; contudo,

para conhecermos o “eu inferior” precisamos do auxílio do Eu Divino.

 

 

Como narra Besant, o silêncio que se apodera da alma do discípulo, enquanto permanece no Pátio Externo, provoca uma sensação de absoluta solidão, de vacuidade, uma sensação de que toda a vida se desvaneceu.

 

Como explica Raul Branco, a solidão do deserto ou da caverna é uma parte essencial da jornada espiritual, pois o devoto “precisa galgar sozinho a montanha, para depois retornar à planície como um plenipotenciário do Alto”. Depois de ser batizado por João Batista, Jesus meditou no silêncio do deserto por quarenta dias, e dali retornou com sua mensagem. Moisés subiu ao cume da montanha e retornou com as tábuas da lei.

 

Quando o apego ao fruto da ação deixa de existir (vairagya), o discípulo é tomado pela indiferença e permanece suspenso no vazio, por assim dizer.

“Ele perdeu o estímulo do Pravritti Marga e ainda não encontrou o estímulo do Nivritti Marga“,

diz Annie Besant  em

As Leis do Caminho Espiritual”,

fazendo parecer que ele perdeu contato com o mundo das formas e dos objetos, sem que ainda tenha entrado em contato com o mundo real. Este é o paradoxo da vida interna:

“Você não pode tocar o superior

até que tenha perdido contato com o inferior.

Não pode sentir o superior

antes que o toque do inferior se dissipe.”

Em “Rumo ao Discipulado”, Jiddu Krishnamurti comenta que é necessário

“aprender a controlar as emoções, mas não esmagá-las no processo”.

Na verdade, esses sentimentos reprimidos precisam ser liberados. Em seguida, adverte:

 “Examinem cada recanto

e eliminem de cada parte

da sua natureza íntima

o   eu,

e você vai atingir o Nirvana,

porque terá alcançado

a condição de um Buda.”

Cada indivíduo deve fazer essa busca por si mesmo, sabendo que não poderá experimentar a plenitude do seu mundo interior enquanto não fizer as pazes com a sua sombra.

 

 

Sobre o autor:

membro da Sociedade Teosófica em João Pessoa e autor de artigos sobre Teosofia e religião comparada.

 

 

REFERÊNCIA:

XAVIER, Cláudio Antônio de Carvalho. Os abismos da alma.  Sophia, Brasília, jan/fev, 2024, v. 21, n. 107, p.12-17

 

 

 

 

 

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Um dos aspectos mais difíceis do processo terapêutico levado a efeito (ou seja, o processo que superou as questões iniciais, egóicas e sintomáticas dos pacientes) é o fato de que o autoconhecimento, a partir de certo ponto, revela uma parte sombria da personalidade do paciente.

O tratamento inicial, em psicoterapia, alcança etapas terapêuticas que envolvem cura, superação e aprendizado de ferramentas internas de combate aos traumas e aos hábitos que adquirimos. Tudo isso envolve a beleza da coragem, criatividade e superação da fala vitimista (aquela na qual somos vítimas) e da fala culpabilizadora (aquela na qual há alguém inteiramente culpado pelo nosso sofrimento) durante a psicoterapia. Os progressos quando se tornam visíveis são bem recebidos e se tornam os ícones de que a terapia está sendo bem sucedida. Auto responsabilização, melhores escolhas e superação de dificuldades enraizadas são recebidas com honra e alegria pelo indivíduo que teve coragem de procurar psicoterapia e, de fato, empreendê-la – e não apenas “marcar um horário”. A psicoterapia envolve consciência e ultrapassagem de sintomas corporais, sociais e comportamentais que são difíceis de mudar. Mas, a mudança é vista como necessária. Feita a mudança… vem a bonança, a premiação e o contentamento.

E é aí que, muitas vezes, começa o trabalho arquetípico de nossa Sombra. “Eu deveria estar feliz… realizado… o que está acontecendo?

A Sombra é um elemento tão natural e estrutural de nossa personalidade quando o Ego. Mas, menos famosa.. menos bem-vinda. Nossa luz e força são confortáveis! É bom fazer um processo terapêutico para expandi-las ou recuperá-las. Porém, a etapa de reconhecimento e integração da Sombra no processo terapêutico começa sem nenhum glamour. Literalmente pode ser desnecessário. Se quisermos auferir os benefícios da psicoterapia junguiana ao nível comportamental apenas, pode ser que essa etapa do desenvolvimento humano pleno e de evolução espiritual da Alma Humana durante uma vida humana, fique para “depois”, literalmente depois, como dissemos. Zero problema com isso, inclusive. Se o equilíbrio psíquico realmente exigir isso, mais cedo ou mais tarde, os sintomas retornam e o paciente “voltará” para a terapia ou procurará outro terapeuta. A psique humana sabe se cuidar! Acreditemos, isso é verdade. Logo, pode ser que para algumas pessoas seja desencorajador pensar num nível mais profundo, exigente, menos glamouroso, muito mais confidencial e muito delicado de se trabalhar. Até aí, tudo bem. Ok. Deixemos nossa Sombra na sombra.

Entretanto, se o processo psíquico de crescimento de um indivíduo dispara essa “nova” necessidade… se “apesar de todo o saber e clareza”… se “apesar de compreender tudo e poder tantas coisas”… se, mesmo assim, na verdadeira intimidade do ser existe uma inquietação… isso equivale a dizer que a descida até regiões mais profundas será necessário mesmo que o Ego preferisse parar por ali. Um Ego pode estar perfeitamente ajustado à sua existência… e, mesmo assim, sua personalidade exigir um nível de integração mais profundo. Conhecer e integrar a polaridade sombria de sua pessoa.

O texto acima que estamos comentando é, então, um excelente texto para aqueles que estão “namorando de longe” com essa possibilidade de tornarem as suas psicoterapias algo além da recuperação de uma funcionalidade psíquica ou superação de um trauma, sintoma ou inconveniência comportamental. Estes bravos pacientes avistam que o autoconhecimento que adquiriram durante essa primeira e importante fase da psicoterapia, lhes aponta um novo horizonte. Mal acabaram de escalar a montanha de suas dificuldades, com algum sucesso e muita experiência ampliada de viver a natureza real e psicológica de ser humano… e, lá de cima, já veem novo horizonte… novas montanhas… outras paisagens a se descortinar.

Mas… essas novas montanhas estão encobertas pela espessa névoa da Sombra humana. A nossa Sombra detém o que recusamos em nós, o que avaliamos ruim nos outros e na humanidade, o que é desconfortável enxergar, o que é intimamente perigoso demais, ou seja, uma verdade inconveniente. Conhecer e integrar ao nosso território psíquico a dura montanha de nossa Sombra pessoal, alicerçada na Sombra coletiva da humanidade, é uma guerra muito calada, muito honesta, muito verdadeira, muito desafiadora de partes antagônicas de nossa própria natureza humana!

A essa altura já nos perguntamos: e por que empreender essa nova jornada? Por que tantas diferentes tradições de Sabedoria instruem a seus discípulos mais atentos sobre os perigos da Sombra e o Caminho devido de seu enfrentamento? Por que Deus bondoso me infligiria isso?

Se concordamos fortemente com essas perguntas que já trazem em si a clara negação de nossa própria Sombra, se queremos uma vida “paz e amor” e nos sentimos tremendamente felizes de ser quem somos e não sentimos reverberar dentro de nós o pungente pedido de irmos além… então… assim…. não precisamos mesmo seguir essa jornada. A psicoterapia pode chegar num ponto muito bom de regulação da personalidade. Até ele já se teve se seguir um longo caminho de autoconhecimento e autossuperação. Já foi custosa e meritória a vitória do Ego sobre seus sintomas.

Mas…

Quando o contrário se impõe de dentro para fora… este texto nos diz que

não estamos sós!

Milenarmente conhecido é o Chamado do Caminho que leva o caminhante através de sua Sombra até novos patamares de compreensão de si, do mundo e das expressões do Divino no mundo. Àqueles que tem o aparente e sensível “infortúnio” de encontrar-se ou de mirar ao longe esse “Abismo da Alma”, a mensagem é clara neste texto, nos autores que ele aponta e também na minha experiência profissional:

calma!

Este Caminho não é vencido pelo nosso Ego.

Mas também não é um caminho “desprotegido”.

Ele é um caminho sem dúvida solitário e requer um encontro muito singular entre o indivíduo e a divindade – encontro totalmente diverso das previsões religiosas de qualquer ordem. Este caminho solitário, porém, é o grau máximo de identificação possível a um ser individual em relação ao seu pertencimento à sua espécie. Paradoxalmente, também é o grau máximo de identificação em si mesmo com seu devir particular e próprio. A travessia solitária é também, portanto, integrativa. De forma sui generis, delicadamente pessoal, a contribuição singular e única que podemos SER e FAZER durante nossa experiência de estar vivo, num determinado tempo e corpo no mundo, floresce como oportunidade dada pela Vida.

Sim… “florescer” é uma pequena promessa… se pretendesse “incentivar” um Caminho Espiritual através de abismos da Alma. Há asfalto e acostamento se quisermos ir pelo caminho mais rápido para viver uma boa Vida. Mas, como esse comentário não é para prometer ou advertir, podemos dizer que quem – ao contrário da decisão consciente e auto preservativa – se embrenhar pela Floresta Escura dos sentimentos avassalantes que nos exigem a gentileza conosco mesmos… a estes que, como nós, atravessaram ou atravessarão a “Noite Escura da Alma” como o fizeram tantos de nossos antepassados e sucessores… a estes Deus dará a sustentação de seu colo. É uma promessa divina: a sua Vida tem o seu propósito. O real propósito não se encontra no reinado do nosso Ego. Ele terá de ser desbancado por nossa Sombra. E, então, poderemos ser inteiros. Pequenos, não tão grandes, mas inteiros.

Não tema. “Não volte a dormir”, diria Rumi.

“Inspire força e expire paz”, diria Thich Nahm Hann.

“Confia no Senhor de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento”, diria Lucas.

“Samādhi nunca é possível para pessoas interessadas em satisfazer os sentidos materiais, nem para aqueles que se deixam confundir por essas coisas temporárias”, diriam os Vedas.

Na condição de psicoterapeuta gostaria de deixar aqui uma pequena contribuição após ter visto tantos corajosos homens e mulheres nos seus embates com suas Sombras, ao longo de minha vida profissional: não há autodomínio emocional ou comportamental comparável àquele da pessoa que venceu a seu Ego e identificou-se com o seu Si-Mesmo, servindo assim à sua vida com mansidão e clareza inquebrantáveis.

Quando nossa própria escuridão nos incomoda podemos escolher enfrentá-la e torná-la conscientemente parte de nosso Si-Mesmo. Só então entenderemos mais da ideia “Liberdade de Ser”. E, ser, será leve. Muito, muito muito mais leve!

Bem vindo ao Caminho, a senda mais longa, a via menos trilhada… a que você segue consigo mesmo!

 

 

“Não é a perfeição o que a vida espera de você. Mas, a totalidade.”

Carl Gustav Jung