Francisco de Assis – introdução de Hermann Hesse

FRANCISCO DE ASSIS

por Hermann Hesse

Introdução

Desde tempos imemoriais viveram na Terra pessoas grandiosas e magníficas que não almejavam adquirir fama por meio de feitos inauditos ou de obras poéticas e livros. Mesmo assim, tais espíritos exerceram influência tão poderosa sobre povos e épocas inteiras que todos os conheciam e falavam deles com entusiasmo; assim, seu nome e a notícia de sua existência correram de boca em boca e não se perderam no fluxo e nas reviravoltas dos tempos. Pois tais pessoas não exerciam influência por obras, discursos ou artes dispersas, mas, acima de tudo, porque sua vida inteira parecia originada de um grande e único espírito e mostrava-se aos olhos de todos como uma imagem e um exemplo claro e divino.

Ainda que não tenham concluído nenhuma grande obra visível, essas figuras exemplares tornaram-se inesquecíveis mestres e senhores de corações, graças apenas à vida que levaram, por orientarem toda a sua ação e a sua existência de acordo com um único espírito superior, tal como um arquiteto ou artista erige uma catedral ou um palácio, não segundo seu capricho ou sua vontade vacilante, e sim de acordo com uma ideia clara e um plano vivido. Todos eram almas inflamadas e poderosas, consumidas por enorme sede de infinito e de eterno, que não se concediam descanso nem tranquilidade enquanto não reconhecessem, para além dos costumes de seu tempo e de seus contemporâneos, uma lei eterna segundo a qual, a partir de então, ajustariam seus atos e suas esperanças.

Eram poetas, santos, taumaturgos, sábios ou artistas, cada um a seu modo e segundo seus dons, mas todos iguais no sentido de vislumbrar, na brevidade e na transitoriedade da existência na terra, uma alegoria daquilo que é eterno e constante, e almejar, com desejo nostálgico e paixão ardente, casar o céu e a terra em seu próprio coração e fazer a brasa da vida eterna penetrar o que é terreno e mortal. Dessa maneira, a vida desses seres se libertou das amarras mortais e das fragilidades temporais e, despida de todas as contingências e da casca terrena, apresenta-se como um milagre diante da memória dos homens.

Toda e qualquer vida assim vivida por um homem grandioso nada mais é que um regresso ao princípio da criação e uma saudação fervorosa enviada do paraíso por Deus. Pois aqueles grandes sonhadores e almas heroicas recusaram-se a beber de águas turvas; nunca se satisfizeram com miragens ou com nomes em vez da essência, ou com imagens em vez da realidade; antes, ansiaram insaciavelmente alcançar as fontes puras e primordiais da energia e da vida, lidando com as almas misteriosas da terra, com as plantas e os animais como se fossem seus iguais, almas semelhantes e aparentadas, desejando conversar diretamente com Deus sobre suas necessidades e questões íntimas, em vez de conversar com imagens, símbolos e sombras vazias.

E, dessa forma, conseguiram aproximar todas as outras pessoas de Deus, conferindo novo valor ao mistério da Criação e interpretando-o a partir de uma intuição sagrada. Redescobriram a essência e a lei do homem interior, por enfrentarem a terra e o céu como se estivessem despidos, como se fossem os primeiros homens, enquanto nós, os outros, achamos que só podemos viver no casulo das ideias seguras e do costume herdado. Essas pessoas verdadeiramente profundas e essenciais não raro eram tachadas de loucas, e não falta gente a quem tais almas sempre parecerão um tanto incompreensíveis e insensatas. Mas para quem observa com intenções sérias, a vida de um grande homem se mostra como um caudal e um grito profundo de toda a humanidade; pois, na verdade, tal vida sempre é um sonho em forma de corpo e pessoa, a manifestação visível de uma nostalgia e um anseio de eternidade de toda uma Terra cujas criaturas fugazes sempre tentaram associar seu destino às estrelas eternas.

Naquela época distante, que chamamos de Medium Aevum, ou Idade Média, foram-se erigindo entre os espíritos e os povos poderes imensamente hostis, e todas as nações foram abaladas pela trepidação do clamor bélico e por grandes batalhas. Entre imperadores e papas ardiam conflitos sangrentos, as cidades combatiam seus governantes, a nobreza e a plebe, aqui e acolá, travavam acerba luta. E a Igreja Romana, senhora do mundo, cuidava mais ciosamente de armamentos, alianças e legações, exílios e punições do que da paz das almas. Entre os povos amedrontados surgiu profunda miséria. Em vários lugares apareceram novos mestres e comunidades que resistiam, desprezando a própria vida, apesar das pesadas perseguições por parte da Igreja. Outros seguiam em bandos as imensas peregrinações rumo à terra prometida. Não havia guias nem segurança, e o Ocidente, coração da Terra, apesar de todo seu brilho exterior, parecia estar sangrando.

Foi quando, na Úmbria, um jovem desconhecido, em. conflito de consciência e com profunda humildade, decidiu, com singeleza e desinteresse, ser um seguidor modesto e fiel do Salvador. E outros o seguiram — inicialmente dois, depois três, logo centenas, muitos milhares. E desse homem humilde da Umbria irradiou-se sobre a Terra uma luz de vida e uma fonte de renovação e amor cujos raios fulguram até os nossos dias.

Era Giovanni Bernardone, chamado são Francisco de Assis, sonhador, herói e poeta. Dele se conservou apenas uma única oração ou canção, mas, em vez de palavras e versos escritos, ele nos legou a lembrança de sua vida singela e pura, que, em termos de beleza e grandeza tranquila, sobrepuja muitas obras poéticas.

Quem narrar sua vida não precisará de outras palavras e observações, das quais me abstenho com alegria.

REFERÊNCIA:

HESSE, Hermann. Francisco de Assis. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2020. p. 9-12.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Um texto irretocável e biblioterapêutico. Por que? Porque a verdadeira beleza cura a Alma de seu esquecimento de que é Luz.