História esquecida: quando as lembranças verdadeiras libertam

por Marc-Alain Ouakinin

A  HISTÓRIA  ESQUECIDA

Sentindo a morte se aproximar, o Baal Shem Tov, o mestre do Bom Nome, decidiu legar a seus discípulos a pouca riqueza que possuía. A um de seus discípulos, doou seu xale de oração, a outro, ofereceu seu livro de salmos, um terceiro recebeu sua caixa de rapé em prata… Seu servidor mais fiel, Reb Shmuel, esperava que chegasse a sua vez, mas o mestre distribuiu tudo, e nada sobrou para ele.

Então o Baal Shem Tov virou-se para ele consciente um sorriso e disse: “A você ofereço minhas histórias. Você percorrerá o mundo inteiro para fazê-las ouvir”. Surpreso, Reb Shmuel agradeceu ao mestre, em quem sempre teve confiança absoluta, sem compreender realmente o alcance dessa herança.

O mestre morreu. Reb Shmuel ficou só. Ele dizia, no fundo de si mesmo: “Isso é uma herança? Histórias que ninguém ouvirá?” Pobre era, pobre ficou… Mas um dia começou a circular um rumor segundo o qual havia um homem que estava pronto a pagar grandes quantias para ouvir histórias sobre o Baal Shem Tov. Reb Shmuel se informou e anunciou que ele era o homem necessário. Fizeram com que chegasse a ele um convite e, depois de uma longa viagem, ele chegou numa sexta-feira de manhã a uma grande cidade da Rússia. Foi acolhido pelo homem que o havia convidado, o próprio presidente da comunidade.

À noite mesmo, na ocasião do shabaat, toda a comunidade se reuniu em torno de uma refeição suntuosa, preparada em homenagem ao distinto convidado. No meio da refeição, o presidente se levantou e tomou a palavra: “Temos a honra de receber entre nós o discípulo e secretário do Baal Shem Tov, que veio especialmente para nos contar histórias sobre a vida de seu mestre. Reb Shmuel, o senhor tem a palavra”.

Reb Shmuel se levantou, feliz de poder finalmente falar de seu mestre. Ele abrangeu o público com um olhar generoso e quis começar a falar. Abriu a boca e… Nada. Não se lembrava de nada! Com a cabeça vazia, ele era incapaz de contar a menor história, a menor lembrança… O presidente, vendo sua perturbação, retomou a palavra e disse ao público: “Reb Shmuel está certamente muito cansado de sua longa viagem. Depois de uma boa noite de repouso, reencontrará todas as suas forças e toda a sua memória e nos oferecerá uma boa história”.

No dia seguinte, no meio da segunda refeição sabática, Reb Shmuel levantou-se para falar e, novamente, nada… nada além de vazio. Nenhuma história voltara à sua memória. Confuso, ele sentou-se novamente. O presidente voltou a demonstrar compreensão e prometeu à assembléia que tudo se normalizaria na terceira refeição. Mas, infelizmente, a cena se repetiu mais uma vez e, na manhã do dia seguinte, Reb Shmuel, para o cúmulo de sua vergonha, viu-se reconduzido discreta e friamente por seu anfitrião.

Poucas foram as pessoas que vieram desejar um bom retorno àquele que já tinha, em toda a cidade, o sobrenome de “o homem sem história”… Os cavalos já começavam a andar quando Reb Shmuel ficou em pé sobre o estribo da carruagem e começou a gritar: “Parem, parem, tenho uma história…”

Fizeram os cavalos parar e, do alto da carruagem, Reb Shmuel dirigiu-se ao presidente, que o olhava com uma ponta de esperança: “Trata-se de um pequeno episódio; não sei se isto o interessará, mas enfim…” O presidente o encorajou com um ligeiro sinal de cabeça.

Em uma noite de inverno, o Baal Shem Tov me acordou e disse: “Reb Shmuel, rápido, atrele os cavalos, estamos de saída”. No frio e na neve, atravessamos profundas florestas e depois de algumas horas, chegamos diante de uma grande e bela casa. O mestre entrou e, somente depois de meia hora, saiu e me disse: “Vamos entrar!”

Ouvindo esta história, o presidente começou a chorar, com grandes soluços. Reb Shmuel olhou-o estupefato. Através de suas lágrimas, o presidente viu o espanto se traduzir no rosto dos espectadores e lhes disse: “Deixem-me explicar. A pessoa a quem o Baal Shem Tov veio visitar fui eu! Na época eu era uma pessoa muito importante da hierarquia eclesiástica. Meu papel então era organizar as convenções forçadas, que sempre eram acompanhadas de violência e perseguições contra os judeus. Quando o Baal Shem Tov irrompeu na minha casa naquela noite memorável, eu estava preparando um dos decretos mais cruéis de minha carreira… Mal entrou, o mestre começou a dizer, com uma voz cada vez mais forte: “Até quando? Até quando? Até quando é que você vai fazer sofrer seus próprios irmãos? Você não sabe que é uma criança judia que escapou de um progom, foi recolhida e criada por uma família polonesa que sempre escondeu suas origens? É chegado o momento de retornar para seus irmãos e para a sua tradição”. Profundamente emocionado, decidi imediatamente abandonar tudo e recomeçar minha vida do zero. Perguntei ao mestre: “Mas quando saberei que fui perdoado por todos os meus crimes?” O Baal Shem Tov disse-me então: “No dia em que alguém chegar e lhe contar essa história, você saberá que foi perdoado…”

REFERÊNCIA:

OUAKININ, Marc-Alain. Biblioterapia. São Paulo: Loyola, 1996. p. 86-88.

 

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Baal Shem Tov sabia o que fazia. E Deus também. Aquele pobre e desmemoriado rabino, eleito pelo Mestre para contar suas histórias, Reb Shmuel, quando esquece nos coloca – a todos nós – na maravilhosa situação de podermos tomar a decisão de sermos generosos com as pessoas. Ele não estava merecendo nada, não estava entregando nada. Ao contrário… esquecido, estava se envergonhando de não honrar seu Mestre. Mas, como bom judeu, cumpre uma determinação fundamental do judaísmo: não desistir. No último momento se lembra de uma “historinha” e a conta simplesmente…, mas foi essa sua lembrança e sua sinceridade consigo e com os outros, de lembrar e partilhar…, ou seja, o simples e despretensioso gesto de ser sincero com o que lhe ocorre verdadeiramente como lembrança de seu Mestre, que transforma toda a situação. E ao partilhar o que tinha esquecido… LIBERTOU o bom homem que o havia tratado com generosidade, apesar dele não a ter “merecido”.

É uma história sobre simplicidade e libertação de nossas culpas!!

É preciso facilitar nosso auto perdão mil vezes, se mil vezes forem necessárias!!

Nos perdoar está longe de ser fácil.

Se realmente nos sentimos culpados… é realmente difícil nos perdoar.

E uma lembrança verdadeira nos liberta.

Verdadeiramente podemos entender o que foi e o que é, o que nos fizeram e o que fizemos com o que nos fizeram, o que podemos mudar… e o que escolheremos honrar.

Não há pessoa que mereça mais nossa orientação sincera e nossa generosidade genuína que nós mesmos. Só nós sabemos tudo que vivemos, tudo que erramos, tudo que não sabíamos, tudo que queríamos, tudo que suportamos, tudo que ultrapassamos… e… seremos só nós mesmos, aquele que será o único conosco, pertinho e próximo de nosso coração e de nossas verdadeiras lembranças… só nós estaremos conosco até o fim. Cuidemos de sermos gentis, portanto, conosco. Sigamos gentilmente.