A imagem do poço no conto “A escrita de Deus”

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por  Kathy Amorim Marcondes

Jorge  Francisco  Isidoro  Luis  Borges Acevedo nasceu dia 24 de agosto de 1899, em Buenos Aires e faleceu em 14 de junho de 1986, em Genebra. Assim como sua vida, retratada aqui em datas, aparece começada num continente e terminada em outro, assim foi também foi sua escrita. Nosso autor favorito de realismo fantástico, Borges nos tira da terra… e suas palavras nos levam a outros continentes de realidade. Sua produção escrita é vasta e profunda… Escreve, descreve e constrói sobre a filosofia, metafísica, teologia, escritores fictícios, labirintos, bibliotecas e mais bibliotecas.

Em 1949 publicou o livro “O Aleph” e seu décimo segundo conto intitula-se “A escrita de Deus”. Neste monólogo de Tzinacán, sacerdote reduzido a condição de prisioneiro de um célebre (e real) conquistador espanhol, Pedro de Alvarado, percorremos sua aventura de vencer intimamente seu inexorável cárcere e, sobretudo, a humilhação dos vencidos. Sobre este texto sucinto e magistral, de pouquíssimas páginas, muito já se refletiu e milhares e milhares de páginas já foram escritas tentando perscrutar seus sentidos, tanto na literatura e quanto na psicologia. Aqui faremos mínima digressão imagética: especificamente sobre o poço, cenário de todo o conto. 

O texto é uma obra-prima que nos propõe camadas e camadas de interpretações. No I Congresso Estadual de Psicologia e Literatura (ES) em 2019, pudemos participar de uma mesa sobre esse conto com especialistas que nos fizeram rever e ampliar o que já amávamos de coração. Virginia Abrãao (doutora em linguagem) nos apontou aspectos iniciáticos, herméticos e cabalísticos do décimo segundo conto. Felipe Cazelli (mestre e filósofo) nos apresentou como Platão e a fenomenologia conversavam com as ideias de Borges. Kenner Cazzoto (doutor em Teologia) nos trouxe desdobramentos da linguagem do imaginário revelando mais e mais dos sonhos de Tzinacán e dos jogos de linguagem borgiano. Na ocasião percebemos que era aquele um destes textos inesgotáveis da humanidade… 

“A escrita de Deus” é uma preciosidade literária que conversa muito bem com dos especialistas em Literatura, mas vai além… Borges conversa com qualquer leitor e, este conto, particularmente, conversa com qualquer tradição espiritual ocidental ou oriental. Como escrito se abre a ser lido… e quem o lê conversa, reinterpreta, refaz caminhos em 14 parágrafos curtos e magistrais imersos em penumbra. 

O texto traz como um de seus principais argumentos a busca de certas palavras… de uma escritura divina. Mas, ao armar o enredo dessa busca, a própria escrita se torna uma problematização – antes de tudo – de si mesma. Nele se pode exemplificar o trecho do célebre Ouaknin:

[…] Pode-se dizer que um livro é um livro quando o “seu poder dizer” ultrapassa o seu “querer dizer”, se ele “contém mais do que contém”, se “um excedente de sentido, talvez inesgotável, fica encerrado nas estruturas sintáticas da frase, em seus grupos de palavras, em seus vocábulos, fonemas e letras, em toda essa materialidade do dizer, virtualmente sempre significante”. No livro, o “sentido imobilizado nos caracteres já rasga a textura que o prende”. (OUAKNIN, 1996, p.191-2)

Aqui não nos propomos, portanto, a impossível tarefa de fazer uma análise detalhada das dezenas de imagens riquíssimas que são construídas pelo autor no seu breve e profícuo conto. Borges é magistral e consegue nessa escrita tipicamente sucinta (raramente escreve mais que 6 páginas em seus ensaios), apresentar imagens que vão nos habitar e comover por anos ou décadas… inesgotavelmente. Então… a confessa intenção desse “breve” texto é convidar você para, antes de mais nada, fazer a leitura integral do conto... Depois disso você encontrará aqui apenas UMA das muitas associações e ampliações que podemos fazer quando nos deparamos com textos seminais – que nos aguçam a confabular com nosso inconsciente… produzindo significações escavadas no texto, mas que nos levam 

                           para fora do poço… através do poço.

Partilharemos aqui como a imagem do poço, provinda deste conto, nos move o coração e a interpretação livre. Muito longe de ser “o que significa o poço do Borges” para uma psicoterapeuta interessadíssima na “cura pela escrita”, nossa interpretação livre apenas convida você para fazer a sua… para transbordar além. A interface que a psicologia pode fazer com a arte literária é imensa, mas – creiam-me, fica sempre mais útil e agradável investigar essa interface passando pelo próprio coração. Sigam seu coração e deixem as imagens e seus significados fluírem como água limpa de uma poderosa fonte interior… 

O texto borgiano, a rigor, não descreve nem usa a palavra “poço”… mas, pessoalmente, sempre visualizei assim enquanto lia. Me foi partilhado por alguns outros leitores de Borges que assim também aconteceu a eles. Mas, isso é totalmente uma liberdade imaginativa do leitor que pode não construir essa, e sim outra imagem, igualmente válida. Eu construí a imagética de um poço escuro de onde vi a personagem narrar sua sina em “A escrita de Deus”. A recorrência dos relatos espontâneos dos leitores alunos e amigos meus, de que também viam Tzinacán num “poço” (e não num calabouço, e não num alçapão, e não numa cela de prisão) nos sugere que esta imagem arquetípica possa ser associada ao texto, tamanha a força da mesma e, igualmente, da força do texto. 

Descemos ao poço arquetípico junto com Tzinacán.

E podemos dessa excursão voltar mais enriquecidos, se conversarmos com essa imagem… mais e mais detalhadamente.

Há uma importância bastante particular para mim, neste conto, de Tzinacán tentar vencer a escuridão do poço, num primeiro momento, recordando o que vivera. Sem ter nada o que fazer, nem como libertar-se, esperando a própria morte, o texto nos diz que o mago decide recitar de memória aquilo que viveu e conheceu em seus dias sob a luz da terra, na liberdade, “[…] quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia” (BORGES, 1997, p. 88). É muito comum que quando queremos esquecer alguma coisa nos exercitemos rápido… nos enchamos de pensamentos, fazeres e pressas… para esquecer. Se, porém, tivermos de sair e nos ocorrer que estamos esquecendo de levar algo, fazemos o contrário… andamos mais devagar… nos movemos mais devagar… talvez até fechemos os olhos… para recordar. A boa recordação requer a desaceleração… No texto a desaceleração do tempo (“Perdi o número dos anos que estou na treva”) o faz buscar na sua memória os seus registros e, assim, “povoar de alguma forma o tempo”. Nessa hora o leitor pode ser fisgado… 

Quem não tem um poço de recordações na sombra?

Quem nunca se sentiu prisioneiro e impotente? O poço é o lugar/situacional onde encontramos nossa personagem e podemos fazer nossa identificação (haverá algo mais humano?) com sua situação melancólica e insuspeita e apartada do mundo (como nossa verdade íntima é, e o sabemos, quem sentirá nosso mundo como nós mesmos? Ninguém!). Embora largamente separados no tempo da personagem de mago de natividade imprecisa, dos tempos da América invadida por espanhóis malvados… nos identificamos no espaço de seu confinamento. Num instante já o julgamos inocente e inocentado. Já estamos/somos/fomos presos, com ele, por sermos algo como ele. E se o lemos ali… é porque já o adivinhamos livre o suficiente para nos contar. Na última linha… notaremos o segredo revelado… avançamos todo o texto para saber como vencemos o tempo de encarceramento, o castigo, a derrota, a solidão ou o isolamento dele (e nosso).

Já como nosso total herói-no-poço (semelhante ao meu Batman na bat-caverna, imagem de infância mais querida), mal iniciam os parágrafos de leitura… e Tzinácan revela sua altivez e intrepidez, sua coragem e maestria, apesar da sombra. Percebemos que a superação da hostilidade de seus inimigos e de sua angústia frente ao confinamento perpétuo teriam um sentido capital no texto. E como a dureza de seus dias é muita e sua invencibilidade tamanha, todo o seu esforço se transforma também no nosso, de leitores seus. E dentro do poço, mas com o propósito de ter alguma vitória sobre essa condição de encarceramento, ou seja, para não perder a si mesmo por completo, ele, o encarcerado, recorre aquilo que é seu… tenta manter a posse de suas memórias daquilo que lhe pertencera, de sua vida, de suas lembranças iluminadas. 

Seu ato heroico é pertencer-se e não abandonar a si mesmo…

revendo sua próprias memórias – honrosa persistência e lealdade. Nosso ato de leitor é torcer doravante, penhoradamente, para que o encarcerado-que-também-sou-eu alcance sua melhor memória. Quem sabe boa o suficiente para ser escrita? Mas… pensando bem subliminarmente… foi!! Já que ali estamos testemunhando o monólogo isso prova que foi escrito! Não prova?

Este é o efeito de um texto magistral. Envolver-nos em sua trama.

Rememorar para Borges é elevado a condição de posse de si e não de entrega ao desespero. O poço, o fundo, a sombra… torna-se um convite para a luz interior, para a memória vivida à luz.

Alberto Manguel revela numa conferência sobre Borges, que está no YouTube (referência abaixo), que quando chegava para ler para ele, o encontrava recitando os textos que conhecia de cor. Manguel foi um dos contratados, quando mais jovem, para ler para Borges já cego. O velho escritor sem poder ler seus amados livros, precisava ouvi-los. Mas, para Manguel, leitor atento, foi fácil perceber que Borges não desconhecia o que pedia para lhe ser lido. Ao contrário, tentava assim vencer sua escuridão com suas lembranças. Ao contratar leitores para ouvir as palavras, tratava de re-colorir suas próprias memórias. Sabia de cór, sabia de coração (“dans le coeur”) e apossava-se da memória pela audição, as vezes até corrigindo a pontuação na pronúncia de seus leitores mais desatentos. Sua memória era prodigiosa e seu conhecimento de literatura e de línguas era simplesmente surpreendente. É conhecida a versão de que podia apanhar um livro preciso nas estantes da Biblioteca Nacional da qual era Diretor, mesmo cego. Sabia de cor onde estava as coisas que amava. 

[…] Borges, com a prerrogativa de que todo leitor tem de transformar um texto, transformou muitos dos textos da literatura universal e os tornou seus. Fez deles seus em sua memória. Borges tinha uma memória fabulosa.

Quando ficou cego, na metade dos anos 50, uma doença que herdou do pai, e, como perfeitamente disse nosso amigo, nomearam-no diretor da Biblioteca Nacional, foi o terceiro diretor cego da Biblioteca Nacional, é uma tradição na Argentina…

Então compôs esse poema dos dons, no qual diz que: 

“ninguém rebaixe à lágrima ou repreenda 

  essa demonstração da magnífica ironia

  de Deus, que me deu ao mesmo tempo 

  os livros e a noite”.

Mas ao dar a ele os livros e a noite, Borges, nessa noite, já tinha os livros.

Eu tive a oportunidade, como muitos outros, eu era um adolescente, de ler para Borges. Mas a leitura que fazíamos para Borges era muito particular, era uma leitura na qual Borges já conhecia o texto, e então queria refrescar a memória.

[…] Quando Borges ficou cego, havia muitos momentos nos quais ele estava sentado, não dizia nada, e nos dávamos conta de que ele estava recitando coisas que sabia de cor. (MANGUEL, 2015. Negrito nosso.)

Tzinacán nos parece, portanto, uma personagem que carrega um valor preciosíssimo para Borges: busca na memória do seu mundo, uma saída para o mundo escuro que não era o seu. Os cuidados da personagem não por acaso serão os mesmos testemunhados por Manguel. Rememorando se honra a memória que se teve, parece ser a valoração do escritor e da sua personagem.  A privação da liberdade do encarcerado e o escuro onde vive, exceto pela luz que vem do alto, na hora mais alta – simbolicamente as 12:00 –, podem ser vistas como que alegorias antecipadas da sua condição de privação da visão que piorava significativamente (só a perderia totalmente em 1956). No conto, a personagem vence a racionalidade e a materialidade de seu cárcere, vence inconsciência e desrazão… buscando rever no seu companheiro de cela, um tigre, traços reveladores da sabedoria e poder da vida vivida anteriormente à sombra. Tinha um único flash de luz diário para memorizar e decifrar a fera do outro lado do poço. E o fez consistentemente.

O tigre no conto detém a escrita sagrada, infinitamente poderosa. Neste companheiro de sombra quisera os deuses, talvez ironicamente, deixar velada toda força de toda a criação… de qualquer criação… inclusive da criação da libertação do poço. Aqui, na busca pelas palavras que criam mundos Tzinacán parece ser o detentor do mesmo sentido de um dos versos de Borges em poesia de nome “O Golem”, uma das tantas vezes em que o escritor toca na temática da escrita de Deus. Tzinacán, como Judá Leão, o rabino de Praga, parece “sedento de saber o que Deus sabe” e por isso “tentou permutações de letras e complexas variações” (BORGES, apud. CAMPOS, 2013, p. 35). No poema a pronúncia dessa escrita tem um desfecho vergonhoso, mas no “A escrita de Deus” o desfecho é absolutamente arrebatador e triunfal. Mas… não cheguemos ao comentário final ainda…

Como leitores sofremos com Tzinacán, torcemos por ele… e nos espantamos com o final surpreendente. Borgiano. Não há adjetivo melhor. O final deste conto é autenticamente borgiano. Sublime do ponto de vista imagético. 

A experiência simbólica mostra que quem compreende um símbolo não só se abre a um “mundo objetivo”, mas, ao mesmo tempo, consegue sair de sua situação particular e alcançar uma compreensão do universal; isto se explica porque os símbolos têm uma maneira de fazer estalar a realidade imediata, tanto como as situações particulares… “viver” um símbolo e decifrar uma mensagem corretamente implica “uma abertura para o espírito” e, por último, um acesso ao universal. (DAMIÃO, 2005, p. 36. Negrito nosso)

Acreditamos que o leitor é transportado a um território criativo quando, pela leitura, vive um símbolo: seja de opressão como o poço escuro e fundo, ou de renascimento como no poço fonte sagrada. Como já dissemos, pela imaginação e ampliação cada leitor passa a produzir suas associações significativas e simbólicas, transformadoras e potencializadoras de seu próprio psiquismo. 

Os aspectos simbólicos de “A escrita de Deus” são profícuos em frustrar o leitor que deseje a monotonia de sua velha-mesma-vida de volta, após a leitura.

Não seremos os mesmos…

Claro que o “simbólico” para uma pessoa pode não ser para outra. E aí está a riqueza da arte… cada um a acessa à sua maneira e revive, ou não, o seu material simbólico através das associações construídas a partir da imagem simbólica a que é exposto. Cada pessoa é mais ou menos sensibilizado emocionalmente pela imagem exposta. Os artistas mais geniais são os que conseguem expressar esses símbolos universais e que, ao fazê-lo, facilitam a aproximação pessoal do observador da obra ao significado simbólico para si mesmo e que, não raro, ressoa as significações simbólicas coletivas. Borges é desses geniais construtores de ficções tão e tão fictícias que as vivemos nos próprios ossos. Terminamos por saber exatamente de que labirinto, de que sonho, de que areia, de que tigre, de que palavra falava Tzinacán – o que nada falou. 

O que se fala em escrita tem sempre essa possibilidade de não ser exatamente o que se escreveu. No jogo da literalidade e da conotação, das entrelinhas e dos climas uma imagem é poderosa no seu direito e por causa de seu avesso. Isso para dizer que: a imagem do poço escuro pode ser, além de metáfora de aprisionamento e confinamento, metáfora também do não encontro de águas profundas e límpidas! Observemos que ao criarmos pela escrita as palavras “não encontro de águas profundas” nos é impossível não as encontrar nas imagens mentais que passamos a fazer dessas águas profundas não encontradas. O cárcere de Tzinacán é seco, mas não nos espantamos em nada que, nele, Tzinacán, possa se afogar. Em areia. Mas, se afogar (imagem que remete a água fora de medida). Num jogo de oposição com a fonte sagrada de águas limpas – que não está presente no texto – a areia quase o sufoca até que outro desdobramento simbólico, num próximo sobressalto imagético, se dá: o leitor acompanha-o acordar de um pesadelo e bendizer o que se tem acordado, ainda que treva e cárcere.

E quem de nós não abençoa o lugar real onde estamos ao acordar de nossos pesadelos?

Acordamos juntos com Tzinacán, mas talvez não tão pouco sobressaltados como ele parece ter ficado. No momento em que acorda do sonho dentro do sonho… ainda não termina a aventura. Na verdade, ali começa a derradeira… que nos levará aos parágrafos finais.

Um poço é, possivelmente, símbolo, pois além de remotíssimo em história e universalidade de aparecimento, é inegavelmente associado a natureza humana: fruto de trabalho intencional e determinado na procura de nutrição e força. A água, tão indispensável a vida, num poço não aparece “naturalmente”, ela é procurada e então encontrada, ela é persistentemente antecipada mantendo-se a esperança… então… brota com força e os mananciais antes ocultos, agora se revelam no fundo do poço. A aventura de escavar um poço conquistando alcançando água limpa e forte… pode perdurar servindo ao homem, por séculos.

A terra seca ou o lugar hostil pode trazer vida e manter a esperança, quando escavada profundamente. O poço revela uma oportunidade conquistada de acessar uma fonte matriz primeira. Do “dentro” da terra, do “centro” da Grande Mãe Gaia que gera a tudo que vive na Terra… brota a água dos rios subterrâneos, dos fluxos invisíveis de águas claras e límpidas. Essa imagem evoca a fluidez e a correnteza… logo, também, a liberdade de um encarceramento

Um poço pode simbolizar – e para nós é justo isso que ocorre no conto “A escrita de Deus” –, o esforço visível para se achar a fonte interna e profunda de onde sentimos que pode emergir nossa liberdade interior, aquela que nos é tão cara e trabalhosa!

Quando a imagética do cárcere, descrito por Borges apenas como “profundo e de pedra”, se configura no nosso imaginário interior como um poço… com pedras sobre a terra para demarcar onde fica, para que não caíamos nesse buraco desavisadamente… com o difícil e vital acesso a luz superior que o ilumina e dá condição de continuar a escavação até o alcance do que se busca… com a experimentação maravilhosa do valor do “ar livre” e da “luz do dia”… entre tantas outras metáforas do despertar e ressurgir do escuro… quando isso acontece nos conectamos com algumas das lições da escuridão, tais como valorizar a luz.

E com algumas das lições do poço: valorizar o que a escavação e a memória podem nos fazer acessar.

Encerrando num impactante final, na altura da quinta e última página do conto magistral (contei… é a quarta vez que uso a palavra! 🤔 ), mais um jogo de símbolos reverbera o caráter arquetípico da imagética borgiana: “nunca direi”. 

Também num silêncio de leitor, impotente e postado a frente do final do conto, nós – que torcemos e nos compadecemos – somos “elevados” e levados a categoria de sabedores do segredo de que Tzinacán. Ele venceu o cárcere, mas silenciou a vitória. A imagem evocada é do “nunca”. O sacerdote opta pelo silenciamento do que o leitor acaba de saber que ele poderia dizer… que poderia mudar tudo…

Os símbolos que envolvem o silêncio também envolvem a reverência mais profunda. O silêncio pode ser o resultado de alguém ser calado ou de alguém não ter nada o que dizer, em seu lado sombrio. Outrossim, o silêncio pode ser o nirvana, a compreensão última, a paz derradeira, no seu aspecto mais transcendente. 

Em “A voz do Silêncio” (1889) de Helena Blavatsky temos uma interessante, refinada e rebuscada definição sobre o alcance de verdades iniciáticas. As características descritas para o buscador da verdade (ou caminhante, discípulo, aprendiz espiritual) acerca da compreensão da natureza das coisas em muito relembra a imagética Borgiana. 

Aquele que ouvir a voz do Nada“o som sem som”, e a compreender, terá de aprender a natureza de Dhâraná. [concentração intensa e perfeita da mente, abstraída de todos os sentidos]. 

Tendo se tornado indiferente aos objetos da percepção, o aluno deve buscar o rajah dos sentidos, o Produtor de pensamentos, aquele que faz a ilusão despertar. 

A Mente é a grande aniquiladora do Real. 

Que o discípulo aniquile o Aniquilador. 

Pois: 

quando a ele próprio sua forma parece irreal, do mesmo modo como, ao acordar, lhe parece todas as formas que vê em sonhos; quando cessar de ouvir os muitos, poderá discernir o Um – o som interior que mata o que está fora. […]

Antes que a alma seja capaz de ver, Harmonia interna tem que ser alcançada, e os olhos da carne devem se tornar cegos a toda ilusão. 

Antes que a alma seja capaz de ouvir, a imagem (homem) deve se tornar surda tanto os rugidos como aos sussurros, tanto os som dos elefantes em fúria como ao argênteo zumbido do vagalume dourado. 

Antes que a alma possa compreender e seja capaz de recordar, ela deve se reunir com Aquele que fala em silêncio, assim como a forma com a qual o barro foi inicialmente modelado estava unida a mente do oleiro.

Pois então a alma ouvirá e recordará. 

E então ao ouvido interior falará – A Voz do Silêncio, e dirá: 

Se tua Alma sorrir quando se banha a luz do sol de tua vida, se tua Alma canta dentro de sua crisálida de carne e matéria; se tua Alma chora dentro de seu castelo de ilusão; se tua Alma luta para romper o fio de prata que a cinge ao Mestre; fica sabendo, ó Discípulo, que tua alma é da Terra. […]

Cavalga a Ave da Vida, se queres conhecer.

Desiste da tua vida, se queres viver.    (BLAVATSKY, 2004, p. 33-36.) 

A imagética e a hermenêutica de “A escrita de deus” parece-nos tomar a forma literária que também ressoa o sentido teosófico dado ao Silêncio como a condição de onde se escuta uma voz sem sujeito falante. Em tudo poder, é a voz do silêncio. Mas o poder já não mais precisa exibir-se com tal, ou, inclusive assim, nem o seria.

Claro que o texto sobre o silêncio final do protagonista Borgiano pode se abrir a sem número de associações, como é próprio de toda a boa arte. Se escolhemos esse ângulo de abordagem é para realçar, espantados de tanta beleza, como é possível aproximar o pensamento oriental da perspectiva trazida pela literatura de Borges e, particularmente, por esse texto eterno. No silêncio do Senhor do poço escuro de Borges reverbera um grau iniciático de ascensão ao Saber, ao Poder e à Verdade possibilitados pela descida e enfrentamento do poço interior. Uma escrita de Deus acessível ao trabalho disciplinado de um homem que acorda de seus temores.

Releitura eternamente possível e frutífera.

Claro que, como todo bom símbolo, o poço está em muitos outros registros artísticos e literários. A Bíblia cristã ou as histórias judias estão repletas de poços como locais onde se desenrolam vários enredos de diferentes peculiaridades. Por ser tão antiga a prática de cavar poços, se perdendo na noite dos tempos, essa ancestralidade nos permite associar tocar em significações pessoais significativas ou em derivações arquetípicas relevantes. Sem dúvida Borges nos traz essa possibilidade de passeio e ampliação divertidas.

E como é seu poço? 

Qual é a primeira ou mais forte imagem que lhe traz?

No deserto ou na terra nua, largo ou estreito, seco ou úmido, com cordinha ou sem balde… o poço nos brinda com a perspectiva de conversarmos sobre nossas escavações e escuros… trazendo à tona nossa luz e determinação!

Boa descida!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLAVATSKY, Helena. A voz do silêncio. São Paulo: Martin/Claret, 2004.

BORGES, Jorge Luis. O Aleph. 10 ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 87-92

______. Nova antologia pessoal. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

BORGES, Jorge Luis. O poema dos dons. CAMPOS, Augusto de (Org.). QUASE Borges: 20 transpoemas e uma entrevista. Trad. Augusto de Campos. São Paulo: Terracotta, 2013. p. 15-17.

CLARET, Martin. O pensamento vivo de Jorge Luis Borges. São Paulo: Martin Claret Editores, 1987. 

DAMIÃO Jr, Maddi. Experiência do símbolo no pensamento de C. G. Jung. Rio de Janeiro: Aion, 2005.

GOUVEIA, Arturo. A análise crítica – “La escritura del Dios”. In: ______. Borges após Auschwitz; o impacto de genocídios modernos na contística borgiana. Cotia: Editora Cajuina, 2018. p. 171-234.

MANGUEL, Alberto. Memórias de Jorge Luis Borges. Publicado pelo canal Fronteiras do Pensamento. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GOqPXk5zbIQ. Acesso em: 9 ago. 2020.

MARCONDES, Kathy Amorim. Coragem para ser inteiro; a psicologia de Jung e sua perspectiva terapêutica. Vila Velha: Editora Portas, 2019.

SCHWARTZ, Jorge. (org). Borges babilônico; uma enciclopédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

REFERÊNCIA

MARCONDES, Kathy. A imagem do poço no conto “A escrita de deus” de Jorge L. Borges. Vila Velha, 2020. htpp://www.kathymarcondes.com.br