A poesia Haikai – dizer muito com pouco

LABORATÓRIO DE HAIKAI

Por  Suzana Lyra Strapasson  

Resumo: A poesia em Haiku (Haikai) ocupa uma posição de destaque na literatura japonesa e, na literatura brasileira está em evidência devido principalmente à comemoração dos 100 anos de imigração japonesa.  O haikai tem um formato prensado e faz uso de palavras simples, mas o mundo sugerido dentro dele mostra grande amplitude. No Japão o poema é composto em ideogramas e este proporciona agudez imagética. A imagem pictográfica fala por si e mostra o dinamismo da emoção ali visível. Esse método de compor é a passagem do pensamento por imagens para o pensamento conceitual, o que cria na alma uma vocação interpretativa e que, o intelecto pode apenas tatear. O objetivo deste laboratório é então, buscar a essência do poema através da percepção, valorizando a contemplação.

Sem óleo pra lâmpada

Deito-me cedo esta noite.

Na janela… a lua!

Bashô

Haicai é um poema de origem japonesa, que chegou ao Brasil no início do século 20. No Japão, e na maioria dos países do mundo, é conhecido como haiku. Segundo Massuda Goga, a tradução de um haiku é impossível devido ao fato de que não há correspondência de metros (métrica) entre o japonês e o português. Acresce que a cultura japonesa, os hábitos e costumes orientais são bem típicos, e o acesso aos ideogramas é dificílimo porque não são letras, mas idéias, os sinais escritos da língua nipônica, são em número, imensos. Foi Matsuo Munefusa, vulgarmente conhecido como Bashô, mesmo não sendo o criador do haikai, que o levou à plenitude artística, tornando-o a poesia mais popular no Japão. O haikai deriva do clássico tanka poema japonês de 31 sílabas, cometido por mais de um autor. Esta divisão gerou o costume de os poetas reunirem-se para elaborar coletivamente os poemas: um criava a primeira parte e outro a segunda. Assim, ludicamente se engendravam longas séries de versos que foram denominadas renka. Com o tempo, a primeira parte do tanka, adquiriu autonomia dispensando a segunda parte. Estes poemas curtos, repletos de jogos de palavras, ficaram famosos no Japão sob o nome de renka haikai, ou simplesmente haikai.

O haikai é um exercício de concisão e sobriedade, exprimindo um momento vivenciado no presente, isto é, o haikai acontece quando a transitoriedade fixa o aqui e o agora. Sendo baseado na natureza, obrigatoriamente fala de coisas concretas, com existência física. E ao falar do presente através de coisas concretas, necessariamente alude à temporalidade, ao provisório e ao efêmero. Formado de 17 sílabas distribuídas em três versos (5 -7 -5) ou seja, 5 sílabas no primeiro verso, 7 no segundo e 5 no terceiro verso, não ultrapassando 17 sílabas ao todo no poema. Sem rima nem título utiliza-se do Kigô – termo de estação do ano – pois este representa uma das quatro estações: primavera, verão, outono e inverno. 

Deve-se respeitar no haikai a linguagem da simplicidade evitando o “enfeite poético”, bem como não racionalizar o poema. O ponto mais importante é captar o momento de cometer o haikai, pois o poema sugere um diálogo entre autor e apreciador. Esse momento pode ser considerado como um insight, flash, ou ainda, inspiração ao observar uma cena, o que requer persistência.  A emoção ou sensação sentida pelo autor do haikai deve apenas ser sugerida, permitindo assim que o apreciador do poema possa fazer re-acontecer essa emoção ao lê-lo, podendo assim, concluir à sua maneira o poema, portanto, não deve ser discursivo ou acabado. É como disse Jung: “A obra em crescimento é o destino do poeta e é ela que determina sua psicologia”. (JUNG, 1985, p.91).  No poema de ISSA pode-se observar o inesperado, o súbito, que segundo o autor Higginson (1985) toda essa seqüência de acontecimentos no poema pode despertar o espírito zen

Que coisa estranha

Estar vivo

Sob flores de cerejeira.

As flores de cerejeiras podem despertar sentimentos sublimes. Quando se tem o espírito franqueado ao poético, ao místico e/ou ao religioso, tem-se como o poeta, um dom específico, que descobre grandeza em coisas pequenas e transcende todas as medidas quantitativas. É um colocar-se ao lado da “subjetividade absoluta”, onde não há empatia, nem simpatia, nem identificação, somente “ver” e “ser visto”. O enfoque zen consiste em penetrar diretamente no objeto e vê-lo, por assim dizer, por dentro. Conhecer a flor de cerejeira é tornar-se flor de cerejeira conhecendo a vida que vibra dentro dela e, conseqüentemente, conhecer os segredos do universo e do próprio Eu. Eis um modo conativo ou criativo de ver a realidade. Também o inconsciente é algo que se deve sentir, pois a vida reflete todas as imagens que ela cria tirando-as de sua fonte inesgotável, ou seja, do inconsciente. Segundo Jung:

“O segredo da criação artística e de sua atuação consiste nessa possibilidade de re-imergir na condição originária da participation mystique, pois nesse plano não é o indivíduo, mas o povo que vibra com as vivências; não se trata mais aí das alegrias e dores do indivíduo, mas da vida de toda a humanidade. Por isso, a obra-prima é ao mesmo tempo objetiva e impessoal, tocando nosso ser mais profundo”. (JUNG,1985, p. 93).

O haikai por si mesmo não é zen ou produto artístico do zen, apesar da influência do budismo no poema de Bashô, mas sim, surgiu e se desenvolveu através de longos processos históricos e culturais do Japão. Segundo Paulo Franchetti, a primeira menção positiva do haicai no Brasil deve-se a Afrânio Peixoto que apresentava o haicai como um epigrama lírico. A apropriação do haicai na literatura brasileira foi obra do Modernismo. Guilherme de Almeida, nas décadas de 1930 e 1940 tornou o haicai conhecido adaptando sua forma de modo que, inseriu rimas e título e que segundo alguns autores, descaracterizavam o haikai. Mas por intermédio de Ezra Pound (através de um ensaio de Ernest Fenollosa, valorizou no haicai a forma de organização do discurso por justaposição) o haicai atuou de forma marcante na poesia brasileira e foi difundido por Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos a partir de 1955, refletindo assim, um dos pontos centrais da nova poética de vanguarda denominada Poesia Concretista. O período de ouro do haicai no Brasil aconteceu com Pedro Xisto, no que diz respeito à sua disseminação e adaptação. O haicai tornou-se popular no país através de Paulo Leminski e Millôr Fernandes. Helena Kolody foi a primeira mulher a publicar haicais no Brasil seguindo o estilo de Guilherme Almeida. 

Arco-íris no céu.

Está sorrindo o menino

Que há pouco chorou.

Helena Kolody

No Brasil, uma das formas de se praticar o haicai é a que não julga necessária a métrica nem o uso sistemático de uma referência à estação do ano em que o poema foi composto. O haicai é o retrato de um momento.

Sussurros ao longe

Pela estrada

Antiga procissão!

Suzana Lyra Strapasson

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Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Guilherme, Os meus haicais. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 fev.,1937.

BASHÔ, Trilha estreita ao Confim. Trad. Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. São Paulo. Iluminuras, 1997.

FRANCHETTI, Paulo. Notas sobre a história do haicai no Brasil, Revista de letras, São Paulo, UNESP, nº 34, 1994, PP 197-213.

_____ Haikai; antologia e história. 3° Ed. Campinas, São Paulo, Ed. Da UNICAMP, 1996.

GOGA, H. Massuda. O haicai no Brasil. São Paulo, Ed. Oriento, 1988.                                  

JUNG, Carl G., O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1985.

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REFERÊNCIA: 

STRAPASSON, Suzana Lyra. Laboratório de Haicai. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO JUNGUIANA DO BRASIL. 18., 2010, Curitiba. Anais […] Curitiba: SOBAMA, 2010. 

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Este texto nos estimula a estudar mais o haicai e, quem sabe, “cometê-lo” vez por outra. Enquanto exercício estético e poético traz uma possibilidade imensa de permitir trânsito de energia psíquica entre os sistemas psicológicos. Para a perspectiva junguiana da psicologia esse trânsito de energia entre o inconsciente (pessoa e coletivo) com a consciência, ou seja, a saúde psicológica, pode ser prejudicada de várias formas. Quando estamos frente a dinâmicas que favorecem que esse câmbio continue e contornam os obstáculos (neuroses) movimentando energias novas sobre nossos complexos endurecidos, como a arte faz, essas dinâmicas podem ser facilmente chamadas de terapêuticas. A poesia em forma de haicai carrega essa possibilidade de forma tanto simples quanto contundente. A autora do artigo lembra que a apreciação frequente dos haicais nos permite apreciá-los e ver quanta energia podem mobilizar sendo em si mesmos tão pequenos e simples. E aprecidando… podemos até mesmo desenvolver e estimular essa fala concisa porém significativa como escrita… ou como forma de ser… de qualquer forma: salutar!