O banho de mar e o mergulho no ano novo

por Kathy Marcondes

Meus filhos nasceram e cresceram numa cidade de mar. Eu não, não nasci na praia, no Espírito Santo. Lá existe uma cidade chamada Vila Velha e, numa Prainha aos pés de um Convento de 1534, onde mamãe me levava quando eu era pequena, mas, de forma religiosa no dia 1 de Janeiro. O banho de mar mais importante do ano, na tradição das cidades costeiras e também da família de minha mãe, é o do primeiro dia do Ano Novo. Ali ficam, diz a cultura popular, as velhas mágoas, entregues para o oceano. O banhista sai renovado, pronto para o novo ano que começa, cheio da alegria da experiência de mergulhar numa praia, celebrando a vida!

Nessas férias fui com meus filhos para uma cidade costeira e eu, a exaustão em pessoa, ainda não saíra do quarto do hotel. A vista do mar me bastava.

Foi quando sentei naquela varanda, de tardinha, que subitamente, do nada, algumas de minhas memórias vieram… trazidas, talvez, pelo som das ondas…

Numa outra praia linda, fora do Brasil, há muitos anos atrás, onde eu fora trabalhar, eu tirara uma tarde bonita para passear pelas areias de Santa Lucia. Vi uma “esponja-do-mar” murcha naquela areia muito branca. Coloquei cuidadosamente a criaturinha marinha toda ressequida em minhas mãos e a olhei com curiosidade. Nunca antes tinha visto uma daquelas. Eu a julguei morta. Um morador local passou por mim e tentou me dizer com seus sinais e gestos que eu deveria recolocar a “esponja-do-mar” na água. Depois de um tempo, quando finalmente o entendi, minhas mãos já ardiam, levemente queimadas, mas – mesmo assim – entrei no mar até a altura dos joelhos, não sem alguma deferência –, e banhei o animalzinho. Então, surpreendentemente, ele começou a desabrochar. Era quase inacreditável poder testemunhar aquela recuperação lenta e determinada! A vida foi voltando naquela esponjinha quase torrada pelo sol; devagarinho ela foi “inchando” e ampliando-se, ainda em minhas mãos.

De repente, outra surpresa: um pequenino peixe azul-esverdeado, até então aprisionado e imóvel dentro da “esponja-do-mar” enrijecida, que eu não tinha nem desconfiado de existir, reanimou-se… debateu-se e eu afundei as mãos ainda mais naquele mar gelado e vi, agora num misto de  alegria por vê-lo bem vivo e pesar de perder a sua visão, que o peixinho nadou para o fundo com rapidez… a transparência me permitiu por alguns segundos acompanhá-lo livre, solto, banhado, ativo…

Quantas surpresas… quanta vida!

Não soube logo porque aquele fato não me saiu da cabeça por muitos anos e voltava ali, naquela varanda, naquele momento. Recordando as imagens: a “esponja-do-mar” ressequida, a mágica da água do mar fazendo-a reviver, a surpresa do peixinho escondido que voltou a nadar… eu sorri.

Havia levado um livro para ler nas férias e, aí sim, a minha surpresa foi completa!! Na verdade, minha surpresa e quase descrença do que estava acontecendo comigo, não poderia ter sido maior:

… a mulher levou esponja para o mar e mergulhada até a cintura, observou o animal desabrochar e reviver na água. Como mágica, o segredo da vida tornou-se visível nas bolhas que é esponja soltava e, para sua surpresa, um pequeno peixe, aprisionado e adormecido na esponja enrijecida, reanimou-se e nadou para o mar. Daquele dia em diante, aonde quer que fosse, a mulher sentia o pequeno peixe nadando no oceano, e o renascer daquele peixe que havia ficado inconsciente por tanto tempo deu-lhe uma satisfação que estava entre a paz e a felicidade.

Qualquer que seja o nosso caminho, qualquer que seja a cor ou a essência de nossos dias, ou dos problemas que devemos resolver para permanecermos vivos, o segredo da vida está, de algum modo, relacionado ao despertar e ao tornar livre o que estava adormecido. Como a “esponja-do-mar”, nosso coração verdadeiro suplica para ser mergulhado nas águas de nossa experiência, e como o peixe, nossa alma é uma coisa pequenina que nos traz paz e felicidade quando a deixamos nadar livremente.

Entretanto, todas as coisas permanecem endurecidas, contraídas e indecifráveis até que tomamos o nosso coração adormecido nas mãos e, como aquela mulher, o mergulhamos suavemente na vida em que vivemos. (p.22-23)

Não haviam se passado 10 minutos que eu me recordara de minha própria experiência com uma “esponja-do-mar”!! Agora o autor Mark Nepo narrava uma memória dele que era, em tudo, parecida com a minha!! Em tudo!! Se já não bastasse ser incrível um peixinho sobreviver dentro de uma outra criaturinha marinha ressequida e abandonada, agora eu lia isso instantes depois de ter tido essa própria relembrança!!

Não sabia direito como processar tudo aquilo: minha doce lembrança… a incrível, inacreditável, improvável coincidência de ler o mesmo fato narrado novamente, agora em páginas de um livro antigo… enfim… foi impactante.

Carl Gustav Jung diz que um “(…) ligação entre os acontecimentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal e exige um outro tipo de explicação” e que a “sincronicidade é um fenômeno que parece estar ligado primariamente a certas condições físicas, ou a processos do inconsciente.” (JUNG, 1971, p. 1, 76). Era justo isso que acabara de me acontecer: uma sincronicidade. Alguma coisa inconsciente, significativa e importante estava me despertando naquela tarde!

Foi ficando cada vez mais claro que era eu que, muitas vezes, me sentia como aquela “esponja-do-mar”: seca, triste e perdida. Nessas ocasiões parece que vou ficar ali, secando até o fim… Secando sem solução, para sempre! Em seguida penso que o “para sempre”, na vida, dura muito pouco e que deveria me sentir melhor… e lembro também que não há decreto que nos faça sentir melhor… Aí seco mais um pouquinho…

Mas, também é verdade que essa situação ressequida não dura para “sempre”. Sempre acontece algo que eu não estou esperando:

  • alguém me abre um sorriso, meus filhos mandam uma foto,
  • o almoço que eu gosto começa a cheirar apetitoso, um amigo me leva a gargalhadas de sua bobeira,
  • uma oração me comove no Domingo, alguém compartilha comigo que se curou de alguma coisa,
  • uma voz de criança diz algo fantástico em pleno supermercado, as férias chegam… e pronto!

Igualzinho aquela “esponja-do-mar” que salvei naquele dia distante, eu também sou salvo daquela minha paradeira…

  • sai um peixinho de dentro de mim, uma alegria de abraçar,
  • uma vontade de comer sobremesa, escrever uma poesia,
  • declarar umas verdades gentis a um amigo,
  • ver a estreia de um filme que eu gosto,
  • abrir um livro há muito comprado…

Acho que eu sei como a “esponja-do-mar” se sentiu naquela hora que tomou seu banho de mar salvador! Acho também que sei melhor ainda como foi para aquele peixinho… nadar livremente… como é de sua natureza!

Entendi também que eu, muitas vezes, costumo ressecar meus sonhos, me deixo endurecer de tristeza, murcho e aprisiono essa criaturinha flutuante e alegre que vive dentro de mim. Essa pequena criaturinha precisa de banho, liberdade, espaço… que tantas pequenas e belas coisas nos dão gratuitamente… e assim ela nada num oceano feliz – já existente.

Decidi sair da varanda. Pisar na areia da praia. Tomar um banho de mar no Ano Novo. Mergulhar na vida, todo dia.

 

 

REFERÊNCIAS DA CITAÇÕES ACIMA:

NEPO, Mark. Satori. O livro do despertar. São Paulo: Ed. Gente, 2006. p. 22-23

JUNG, Carl Gustav. Sincronicidade. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 1; 76.

REFERÊNCIA DESTE TEXTO:

MARCONDES, Kathy. O banho de mar e o mergulho no ano novo. Disponível em: kathymarcondes.com.br.