O  desafio do fazendeiro

por Kathy Marcondes

Num certo Natal, fazem muitos, muitos anos… numa terra onde as festividades de Natal eram celebradas com muita alegria e devoção, um simples Fazendeiro pediu a Deus um Presente de Natal Especial. Mas era tão, mas tão tão especial o que ele queria, que rogou por uma audiência direta com o próprio Deus em pessoa, para poder explicar-Lhe direitinho sua necessidade e conseguir o seu presente.

Um pouquinho antes do Natal, Deus o recebeu.

O Fazendeiro foi logo tratando de dizer que Deus era maravilhoso, inteligentíssimo, que era seu inventor preferido, muito esperto e generoso, que admirava suas muitas lindas criações etc… etc… Deus pigarreou num “ok, ok… vamos para frente”… e o Fazendeiro tratou logo de arrematar dizendo que, embora o seu ouvinte fosse o próprio Deus, tinha de dizer que Ele não era infalível. Olhou atentamente esperando uma reação brava…, mas como Deus continuava suave e atento, continuou num tom mais forte:

Senhor Deus, admitamos, o Senhor não entende, tão bem assim da terra, não tanto quanto um bom Fazendeiro!”.

Continuou explicando que trabalhava na terra há anos, de sol a sol, que sabia como a terra era boa e farta, conhecia seus cheiros e recados, mas que Deus não conseguia impedir as intempéries que tanto maltratavam a lavoura, afinal morava no Céu, e – talvez por isso, de vez em quando, deixava tudo dar errado para a humilde terra que acabava sofrendo muito!

Deus ouvia tudo muito tranquilo e sereno, mais e mais interessado naquele Fazendeiro. Como percebia que o homem acreditava naquilo que dizia com absoluta pureza, perguntou como tudo aquilo se relacionava ao seu Presente de Natal Especial, para o qual havia pedido a audiência divina.

O Fazendeiro respondeu:

“Peço que me dê um ano, de um Natal a outro, e me permita determinar todas as coisas sobre a terra neste ano. Quero que tudo seja feito de acordo com a minha vontade visando o melhor para a terra e, lhe prometo, o Senhor vai ver que melhorias enormes eu trarei para a Sua terra! O Senhor vai ficar impressionado com os reparos e melhorias que um bom homem da terra sabe fazer por ela!

Lhe desafio a deixar um Fazendeiro cuidar da terra!”

Deus comportou-se como se a palavra “desafio” nem fosse necessária! Concordando com o Fazendeiro anunciou, sorrindo, que ia tirar férias por um ano. Era hora de seu próprio ano sabático e deixou sacramentado que tudo da terra ficaria sob a responsabilidade daquele tão bem intencionado Fazendeiro.

Saindo da audiência o Fazendeiro já sentiu seu poder e imediatamente começou sua obra! Ventava amenamente quando chegou a sua terra, olhou para o horizonte e começou a traçar cuidadosamente seus planos e cronogramas. O Fazendeiro só queria o melhor, pensava somente no melhor; ele era um homem diligente e esticava seus dias de trabalho até não mais aguentar. Seu objetivo precípuo era entregar um bom trabalho, honrar seu desafio e merecer a confiança de Deus.

Durante todo aquele ano nada de trovões, nenhum raio torrou árvore alguma, nada de ventos fortes, nada de alagamentos desnecessários, nenhum perigo para a safra! O Fazendeiro tratou de providenciar dias espetaculares nos meses corretos para isso, chuvas moderadas na boa época para a plantação, madrugadas suaves, sol brando quando assim era melhor, sol forte nos momentos assim necessários para a vida vegetal…

Tudo foi adequado, protegido e sem variações desastrosas. O ano era só beleza, fruto de muito conhecimento lógico e matemático, estatístico, de melhorias calculadas e segurança máxima.

O Fazendeiro queria risco zero! Afinal… desafiara o próprio Deus!

Nos Domingos mais calmos o Fazendeiro sentia-se feliz de ter dado férias a Deus. Aceitando sua responsabilidade de cuidar das melhores condições para as plantações, esmerava-se dia a dia. No fundo o Fazendeiro esperava poder demonstrar a Deus como a terra poderia ser ainda melhor do que Ele havia imaginado, bastando ser melhor cuidada por um fazendeiro. Pensava em dar a Deus todas as boas dicas e lições logo depois que o Senhor testemunhasse a fartura jamais experimentada antes, em terra alguma. O Fazendeiro sorria sempre que imaginava a felicidade de Deus ao ver a exuberância das colheitas no Natal seguinte.

Naquele ano, de fato, tudo crescia muito, as plantações iam muito bem, as pessoas se entusiasmavam com tamanha facilidade no crescimento e com a prodigalidade da fartura da terra: tudo que se plantava germinava e crescia muito rapidamente…

Observando o seu próprio campo de trigo o Fazendeiro pensou que com aquela safra gigante poderia abastecer todos os celeiros por alguns anos e assim, no ano seguinte, todos poderiam apenas descansar e aproveitar a vida. Na verdade… já em novembro daquele ano… o Fazendeiro sentia-se um pouco cansado… talvez… às vezes um pouco triste…, mas desviava-se disso e se concentrava em planejar a volta de Deus e escolher a melhor parte da plantação para Lhe mostrar. Fariam juntos uma avaliação de seu desafio e mostraria como seu Presente de Natal Especial – seu direito de consertar tudo que impedia as colheitas de prosperarem – havia oferecido as melhores condições de produção para a terra…

No Natal seguinte o Fazendeiro teve a prerrogativa de marcar o local do reencontro. Agradecido pela oportunidade concedida, o Fazendeiro mal escondia sua ansiedade para rever Deus. O esperou na porteira, de manhã cedinho, e observou que as férias Lhe haviam feito um bem enorme! Deus voltara bronzeado, tranquilo como sempre, mas com a mala cheia de novas ideias, esperanças e novidades do ano seguinte. O Fazendeiro Lhe pediu que fosse ver com Seus próprios olhos a colheita exemplar de campo de trigo, um bom exemplo de como tudo tinha prosperado e crescido naquele ano. Assim, bem disposto e descansado, Deus seguiu o Fazendeiro. A colheita foi feita. Sob Seu olhar atento e amigo o Fazendeiro coletou uma batelada de trigo. Trazia umas espigas enormes na mão enquanto discursava para Deus. Falava do gigantismo da safra. Mas, enquanto esfarelava algumas espigas, outras e outras, foi ficando cada vez mais surpreso, estupefato, boquiaberto, estarrecido, aturdido, perplexo, siderado e abismado!

Não havia grãos…não havia sementes… o campo inteiro de trigo era uma gigante coleção de cascas sem interior! As plantas haviam crescido sim, mas não havia sementes em lugar algum! O Fazendeiro pediu ajuda… de vários lugares vieram sacos e sacos de outros cereais… ia abrindo um por um… recebendo as notícias on-line, por WhatsApp, por e-mail… pela terra toda, em perfeitas condições ambientais, havia pouquíssimas colheitas de fato produtivas: faltavam grãos e sementes! Os frutos não dispunham de sementes ou as hastes não conseguiam crescer depois da poda… Por todo lugar as mesmas notícias… Já ia, suando, iniciar a pesquisa de como estavam as raízes, quando sentiu-se um pouco tonto… cambaleou… foi quando Deus o levou em seus braços fortes para a varanda da fazenda e o recostou numa rede… foi quando um vento quente lhe reaqueceu as mãos e pés muito frios… foi quando Deus lhe trouxe uma limonada que Ele mesmo fizera na cozinha e uns biscoitos que também experimentou… foi quanto, então, o Fazendeiro começou a se acalmar e a sentir-se fisicamente melhor.

Já caía a tarde de forma espetacularmente bela naquele dia, quando o Fazendeiro conseguiu falar para Deus:

“Sem grãos, sem sementes, como haverá outra safra?”.

Deus não respondeu de imediato.

Deus pacientemente lhe disse muitas coisas. Deus estava particularmente conversador… e entretiveram-se conversando sobre muitas coisas simples, belas, e os assuntos iam da forma das nuvens a influência da lua no crescimento das coisas, do porquê o Jesus Menino numa estrebaria ao sabor incomparável do fruto do cacaueiro… o Fazendeiro perguntou se as Baleias sabiam mesmo falar e Deus queria saber da sua música favorita e se já provara o Café Jacu… Enquanto conversavam, foi Deus quem lhe fez uma boa sopa sem lhe contar os ingredientes. Deus perguntou, ainda, sobre a sua dor nas costas e receitou-lhe água todos os dias as 18:00 horas. O Fazendeiro perguntou seriamente se 18 no horário local… e a isso Deus deu de rir de soluçar, até engasgou. Não era chegado a preciosismos, mas respondeu que sim, 18:00 hs, horário de Brasília. Deus dormiu no sofá. E porque trovejasse, chovesse e fizesse muito frio naquela noite, o Fazendeiro acordou a tempo de cobrir-Lhe com um cobertor xadrez há muito esquecido, mas que ainda servia.

Deus acordou bem cedo. O Fazendeiro teve coragem e apresentou suas desculpas. Lamentava que mesmo sua boa intenção, planejamento e trabalho árduo não pudessem ser recompensados e, ao contrário, tivesse estragado tudo, mesmo sem entender ainda, muito bem, o porquê. Claramente o Fazendeiro não atinava como uma terra sem tormentas e desequilíbrios climáticos poderia ter produzido frutos incapazes de se reproduzir e não darem nenhuma boa semente. Deus então lhe explicou detalhadamente…

Resumidamente Deus lhe disse que, no todo, a ideia de condições “perfeitas” não era assim uma ideia tão eficiente. Deus foi gentil ao extremo para que o Fazendeiro pudesse entender que a perfeição era só uma ideia e que a natureza era uma totalidade. Disse ainda que algumas de suas ideias, as mais sustentáveis, seriam de grande valia dali para frente, que Ele mesmo as usaria sem demora! Deus partiu antes do café da manhã e deixou sobre a mesa uns saquinhos com várias sementes novas para o Fazendeiro.

Era Natal e as pessoas da fazenda estavam aflitas, pois sabiam que o Fazendeiro não deveria ter ficado bem com o fracasso das colheitas. Mas, surpreendendo a todos, o Fazendeiro foi plantar as novas sementes ainda naquela manhã. E, aquele Natal foi de plantio e esperança.

Passado aquele Natal o Fazendeiro continuou trabalhando, mas não reclamava de mais nada, tirava férias regularmente, ria mais e comia menos, andava muito e convidava pessoas para fazer as colheitas anuais com ele, sempre deixando uma mesa farta para a hora do lanche comum. Foi um de seus colaboradores, um que trabalhava no curral, que ousou lhe perguntar como tinha sido a famosa conversa com Deus depois daquele ano que o Fazendeiro mandava em tudo. Fez-se o maior silêncio porque todos queriam ouvir, mas não ousavam fazer a pergunta… vai que o bom homem sentisse vergonha? Mas o Fazendeiro não sentiu nenhuma vergonha, nenhum arrependimento de sua sinceridade. Sua intimidade com Deus era notoriamente maior, e falava Dele sempre como alguém muito próximo. Sua resposta foi algo mais ou menos assim:

“Por não haver desafio, nenhum conflito, nenhuma fricção, quando tiramos tudo de ruim e desconfortável, eu aprendi que o trigo e todas as demais plantas e coisas vivas da terra permanecem dormindo, impotentes. Uma pequena fricção, um desafio é sempre necessário para acordar a Força de Viver, a natureza íntima de cada ser vivo. As tempestades, furacões, secas e enchentes são também necessários para que a Alma seja agitada dentro do trigo, dentro das coisas que vivem. Sem que a Alma seja tocada, o crescimento é apenas exterior, vazio, e não ajuda a manutenção e a evolução da Vida. Super protegidas as lavouras desenvolvem plantas aparentemente adaptadas, fortes por fora, cascudas, mas não têm nada dentro para crescer e evoluir! As dificuldades possibilitam a planta acordar sua Vida, conhecer sua força e criar seu próprio caminho… cuidando de sua semente… de sua herança… de sua fertilidade!”

Alguns dos homens que ouviram não entenderam completamente. Mas, outros sim. Agora, entre todos eles, a expressão “Deus é que sabe” tem um novo sentido, muito ampliado.

Deus é que sabe. Mas, podemos aprender.

.

..

REFERÊNCIA:

MARCONDES, Kathy. O desafio do fazendeiro. Disponível em: http://kathymarcondes.com.br/psi/ideia/textos-para-fim-de-ano/o-desafio-do-fazendeiro/.