O espelho de Deus

por Kathy Marcondes

Deus estava lá. Todo. Onisciente, onipresente… absoluto. Total, inteiro.

Cansou-se.

Também não era para menos! Foi se tornando muito aborrecido seu existir maravilhoso e… só. Na verdade, era muito solitário ser Deus.

Então, deste vazio de Deus, brotou o desejo. Deus desejou companhia, desejou ver, tocar, ouvir… sentir um outro…

Como era Deus, teve uma idéia divina. Só mesmo Deus, para ter uma idéia tão boa, simples e eficiente: criaria “Outros de Si” para lhe fazer companhia em sua solidão pela eternidade.

Assim fez. Expandiu a luz, gerando os tempos, os espaços, as formas e os ritmos… decretou a provisoriedade permanente de todas as coisas e a imperativa necessidade do descanso, da contemplação do que era bom, ao final de um bom trabalho.

Sua ideia genial, mais genial, foi essa “provisoriedade”, que ultrapassou Suas próprias expectativas. Como todo o criado por Deus era provisório, a criação não acabava nunca

Assim Deus percebeu que descobrira um bom passatempo: Universos cheios de Possibilidades, Dobras e Desdobramentos…

Enquanto criava, Deus não teve pressa a qual, é bem sabido, é inimiga da perfeição. Sem pressa, foi observando devagar as novidades que surgiam aqui e ali… aprendendo…

Observou a criação se tornar mais e mais complexa…

Interessou-se particularmente por um acontecimento surpreendente, fenomenal e divertidíssimo: a interatividade das criaturas. Tudo ia se misturando e interferindo umas coisas nas outras…

Deus se perguntava aonde iria dar aquilo tudo que tinha inventado… se, de fato, surgiriam os Outros de Si com os quais se sentiria menos sozinho…

Veio, então, o inesperado mais esperado por Deus: da interação de diversos níveis de realidade, astro e microfísica, química, biologia, uma pitada de acaso, muita barulheira e um tantinho de sorte… booom… a vida brincou sapeca e selvagem num modesto planetinha azul… simpático.

O universo acordou na Terra”, como David Deuscht diria bilhões de anos depois…

Emocionado Deus achou que tudo já tinha valido à pena só de ter chegado até ali! Deus sentiu uma coisa quentinha escorrendo por sua face e conheceu, assim, o choro, pela primeira vez.

Não se amedrontou. Era Deus. Continuou observando.

A Vida era tão esperta, tão vibrante e destemida…

Afinal… Deus enchera Seu vazio de ternura. Enternecia-O a fragilidade e o poder daquela coisinha à toa e, ao mesmo tempo, destinada a fazer companhia a um Deus.

Naquela semana reparou esmeradamente as asas transparentes de uma libélula e foi descansar depois, como combinado consigo. Era sábado e pôs-se a contemplar a criação criada…

A Vida não tardava a ter suas próprias idéias. Se vocês pensam que Deus ia criar um repeteco de si, enganaram-se. Um modelo replicado e simétrico é tão chato quanto a solidão. A ideia divina de criar Outros de Si só teria graça se estes outros fossem realmente outros, com ideias próprias. Se não, teria sido só um enfado: ouvir ecos e ecos, sem nenhuma originalidade.

Que nada! A Vida era pura criatividade… inventava, desistia, fazia de novo… Se errava, aproveitava o erro; perambulando, alastrava-se. Se fabulava, engendrava uma melhoria; desconcertantemente a Vida via, revia e ia que ia… Tudo meio que por conta própria, porque – embora observada bem de perto por Deus –, ela não era uma marionete em suas mãos. Deus não determinava seus passos, existir e destino.

Deus tinha uma queda especial pela liberdade e achava a coisa mais desprezível e autoritária o autoritarismo determinista. Divino eram considerados: as Artes, a Compaixão, a Reciclagem, as Dimensões do Infinito!

Na verdade, Deus nunca soube – nem sabe, até hoje – exatamente onde iam dar as invenções de Sua arteira “criação favorita”.

Ao contrário, Deus mexeu os pauzinhos desde o Início para que tudo pudesse se encaminhar para que, da Vida, brotassem Outros de Si: co-criadores livres. “Divindades”, como diriam os budistas. “Imagem e semelhança de Deus” como diriam os cristãos, mais tarde. O “Irmão Sol e a irmã Lua” de um Francisco, o “Eu Sou” dos esotéricos, a “Alma” de Platão, e o “tanto acima, quanto abaixo” do Alto Nilo até o Tarot… todas essas imagens divertiam Deus em sua ultrapassada solidão e monotonia… elas e tantas outras imagens reverberavam os criativos caminhos da Luz-incriada espalhando-se pelo mundo crível.

Deus tinha conseguido o que queria mesmo, que era, no fundo, companhia. Mas, companhia à sua altura, é claro. Por tanto, os Outros de Si criadores, livres criadores, livres pensadores, livres fazedores de suas escolhas… às vezes até criavam que a Criação “se inventara sozinha”. Nessa hora, quando Deus ouvia isso, era difícil manter os mundos no lugar… Ele ria de sacudir-Se todo… Deus achava essa parte específica da lógica invertida, particularmente, hilária.

Deus foi vendo os Outros nomearem-se “homo sapiens sapiens” num plantinha azul. Aceitou.

Assistiu suas querelas infindáveis sobre a natureza do “Pai” ou de “Deus”. Com paciência infinita Deus passava horas intermináveis ouvindo todos os tratados que alguns fizeram sobre o sentido de sua Criação. Esses verdadeiramente criativos companheiros construíram teorias das mais variadas sobre a natureza de um Deus! Alguns santos O fizeram chorar emocionado, outros a temer pela duração dos tempos. Alguns simples intuíam mais verdade que os intelectuais; e alguns intelectuais faziam tarefas divinas sem cobrar dízimos ou reconhecimento.

Onde havia doação, Deus se derramava e onde havia apego, Deus chorava empático, atento para ver o que a Vida faria para compensar os extremos…

A vida humana era uma novela mexicana, mas Deus se divertia… ouvia muito as crianças… subia o Everest e ia a Meca com frequência… Mas só uma coisa competia com a atenção de Deus mais que a arte do Ikebana: maratonar uma série nova o fim de semana inteiro. Em seguida, Ele se apressava porque ficava muito trabalho atrasado… mas fazia com gosto… Deus não estava mais sozinho… havia muitos novos problemas… todos os dias… e belezas… e soluções… e desafios… e mais beleza…

Para algumas poucas coisas Deus até se adiantava para ver, de tanto que gostava: bebês sorrirem para suas mães. Então Ele esperava no quarto para ver a mulher recostar seu bebê no berço… e afinava os ouvidos para ouvir o beijo suave das mães. Deus não conseguia entender de onde tiravam energia para não dormirem noites a fio… e amamentarem… e sorrirem… e ninarem…

Quando, enfim, mãe e filho dormiam Ele se afastava, indo ao encontro de seu novo grupo de “amigos íntimos” que não trabalhavam antes que Deus chegasse: os poetas.  Os músicos não conseguiam esperar e começavam antes…

Com os crentes Deus rezava. Com os ímpios Deus agonizava. Ficava Deus incrédulo quando lhe atribuíam atrocidades e castigo, mas por fim se acostumou, já que era um Deus, mas nunca conseguia deixar de chorar frente as injustiças… e eram tantas…

Deus, e só Ele mesmo, do mesmo modo exultava de compaixão pelos pobres e pelos ricos; visitava hospitais e mosteiros, com o mesmo empenho. Era possível achá-Lo acordado de madrugada no pré-vestibular ou cochilando na escola de dia.

Deus era Deus na alegria e na dor dos homens.

Deus era tão Deus, mas tão mais Deus depois de ter companhia, que a última coisa para qual ligava era ser “reconhecido” como Deus. Ele era, e pronto. Sempre a postos, sempre quieto. Em paz.

Mas Deus era ainda mais divino na morte. Não, não que acompanhasse os mortos, o Universo tinha resolvido esse problema desde o início, era claro que nada morria realmente. Na morte, Deus acompanhava os saudosos… apiedava-se daquele sentimento difícil demais! A pessoa que se sentia só sempre lembrava a Deus seus próprios séculos e séculos de solidão… eternidade afora. Então, ele caprichava no pôr do sol, no luar ou no canto dos pássaros, trazia às vezes um amigo de longe para dar um abraço em quem chorava, fazia-o lembrar do telefone do terapeuta antigo, tentava cócegas… mesmo sendo, às vezes, em vão. Às vezes, Deus aprendeu, só tempo curava essa dor tão calada. Mas, Ele não desistia dia nenhum: sempre tentava secar as lágrimas e fazer voltar o brilho dos olhos que choravam suas perdas “definitivas”…

No início da paixão de Deus pelos seus Outros de Si  – responsáveis que eram por arrancar-Lhe da solidão de ser o todo e que, de quebra, lhe davam tantas surpresas e emoções novas –, Ele quis ser agradecido, ajudar, se meter nisso ou naquilo, dar uma mãozinha… e acabou aprendendo que não dava certo na maioria das vezes! Os “homo sapiens sapiens” não eram muito de ouvir estrelas, só um Olavo Bilac sabia-lhes o senso.

Deus aprendeu rápido que não adiantava “gritar”. Suas criaturas criadoras não abriam mão fácil de sua liberdade de escolha. Por tanto, Deus não tinha de “ajudar” descarada e despudoradamente como começou fazendo. Deus adorou ter “o quê” aprender. Começou então a eleger sutilezas, promover sincronicidades.

Deus teve de aprender a ser cada vez mais discreto. Detalhista.

Numa tarde, no  fim de um ano, observando a mãe de filhos adolescentes, Deus aprendeu a amar em silêncio, esperar que o “melhor som do mundo” (para quem não sabe é o som da chave na porta de uma pessoa amada chegando em casa muito, muito tarde, e que esperamos acordados e silenciosos), torcer sem dar na vista, ser generoso sem dar bandeira, estar por perto, mas não colado…

Como todo o aprendizado, ficou melhor com a prática.

 

Deus hoje é um especialista em detalhes. Está no simples, no belo, no bom e no justo. Achou bom parar por aí.

Mas, sendo Deus teimoso como era, só sossegou quando achou um meio divino, fabulosamente eficiente, de revelar-se aos que pudessem compreender e, ao mesmo tempo, ficar invisível aos que se perturbassem com a sabedoria.

Sabem o que Ele bolou?

Meter-se nos espelhos!!!

Resolvido. Fica lá: próximo, quieto e fiel. Um Deus!

É por isso que os olhos com que vemos Deus, são os mesmos olhos com que Deus nos vê.

E assim é, se lhe parece. Pode escolher.

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P.S.: Deus lhe manda esse lembrete: muita paz e um Feliz 2022, 3, 4, 5, 6 etc… para você, no espelho.

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REFERÊNCIA:

MARCONDES, Kathy. O espelho de Deus. Disponível em https://kathymarcondes.com.br/psi/ideia/textos-para-fim-de-ano/o-espelho-de-deus