O segredo da receita

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O SEGREDO DA RECEITA DE 25 ANOS DE SUCESSO

 por Kathy Marcondes

Aquele era um dia 25 de dezembro pra lá de especial!

Claro que já seria especial pelo Natal, essa festa cristã! Mas, naquele 25/12/2021, no final da fase mais incrível que eu já tinha vivido da história humana (uma pandemia mundial que nos revelou que a Terra é redonda, sensivelmente redonda), haveria mais uma outra comemoração:

⚜️  25 anos de sucesso de uma empresa familiar!   ⚜️

No Brasil isso é digno de festejo mesmo: abrir uma empresa do quase-nada, sem tradição, com pouco dinheiro ou apoio, erguê-la apenas pelo imenso esforço de trabalho e, simplesmente, completar 25 anos ininterruptos de sucesso crescente!

Isto é, em si mesmo, uma marca festejável, louvável, admirável.

Contudo, o que mais me interessava naquela comemoração, marcada para as 12:25, era a promessa de que, finalmente, seria revelado o SEGREDO do sucesso surpreendente do pão-de-mel, carro-chefe das vendas daquela empresa! Eu, como tantas pessoas, sempre quis entender porque nenhum outro pão-de-mel se comparava ao da Dona Marly.

Quem nunca comeu o Pão de Mel da Marly pode, realmente, não entender nossa curiosidade. Um pão-de-mel é apenas um pão-de-mel mais ou menos macio, com mais ou menos recheio… podem pensar os céticos. Para mudar esse pensamento pré-concebido só há um jeito: comer seu primeiro Pão de Mel da Marly.

Depois disso se poderia compreender perfeitamente a euforia daquela tarde de revelações!

Todos ali queriam conhecer o famoso “ingrediente secreto” da Dona Marly, porque já tinham provado aquele inconfundível sabor equilibrado, rico em nuances e aprazível ao paladar. Não havia nada mais comum na vida da Dona Marly e de sua família do que pessoas pedindo a receita do pão-de-mel!!

Tem cravo?”    “O segredo é a canela?”    “Como faz para chegar nesse ponto perfeito?

Claro que uma constatação é fácil de se fazer: os muitos anos de produção e os clientes muito fiéis e sempre dando um feedback muito positivo, atestam que a RECEITA SECRETA da Dona Marly está consolidada como muito boa. Os recheios podem e devem mudar, mas a massa e a crocância da cobertura: isso não! Estão perfeitos e equilibrados, são como são!

Qual o segredo, afinal?

As 12:20 Tatiana, Mariana, Luana e André se apertaram atrás da mesinha comemorativa, armada dentro da própria fábrica (que fica no mesmo lugar há anos, bem pertinho da obra social onde Dona Marly atua filantropicamente há mais de 3 décadas, na mesma rua, para ser exata). Os filhos chamaram a mãe com uma saudação, emocionados e amorosos.

Como se via, aquela era uma mulher especial: tinha aqueles 4 filhos que estavam ali, sorridentes e orgulhosos de comemorar os 25 anos do Pão de Mel da Marly, mas o que ninguém conseguiria nem calcular é a quantidade de filhos adotivos, de jovens mãezinhas e de famílias inteiras que Dona Marly, pessoalmente – com suas mãos e, sobretudo, com seu olhar –, já havia colocado no seu coração e sob suas preces. Era esse o motivo pelo qual misturavam-se ali famílias de sangue e de espírito, colaboradores da fábrica, colegas de trabalho e clientes que se tornaram familiares, amigos de longa data como eu e outros recém apaixonados pelo doce e cativante jeitinho de ser de Dona Marly.

Na sua vida a família, a empresa, seu caminho espiritual e sua doação social não se confundiam. Rigorosa e metódica para horários, sempre manteve rígida disciplina de trabalho e dedicação diferenciada para cada ambiente. Nunca soube quantas horas por noite Dona Marly dormia, mas certamente eram poucas. Sua doação a tudo que fez na vida certamente se deu em muitas horas diárias. Porém, a exaustão por isso, que até justificaria um tom de voz elevado ou rispidez, nunca foram observadas!

Dona Marly é dessas raras pessoas muito simples, que faz muita coisa, fala pouco, reclama zero, sempre atenciosa, olhos serenos, transmitindo a maior paz.

Por isso, a gente se pergunta: “será que ela sente raiva em algum momento?” Porque isso ninguém relata! Eu, curiosa, já perguntei isso numa noite para ela, e ouvi:

Claro que sinto! Mas entrego para Deus imediatamente, e ela vai embora!”.

Uma resposta típica de Dona Marly! Então, fica fácil também imaginarmos porque, naquele Natal e naquela comemoração, tudo era festa… e gratidão, muita gratidão! Por ela! Por conhecê-la! E por ter nossa curiosidade humana por sua receita finalmente contemplada!

Dona Marly, que entrou na recepçãozinha transformada em salão de festas as 12:21, estranhou, sinceramente, o apinhado de gente! Não cabia mais ninguém! Não houvera convites formais… um amigo falou com outro… e lá estávamos todos… tentando homenagear sua lealdade, firmeza de gestos e comportamentos com nossos aplausos👏🏻👏🏼👏🏾👏👏🏼…As 12:24 ela insistiu que parássemos!

Quem conhece Dona Marly sabia que não seria muito fácil tirar um longo discurso dela: mulher de pouca fala e, sobretudo, prática, foi impondo um silêncio respeitoso… para quebrá-lo dizendo: “Vamos a prece!”. Como sempre, ela não pensou nem nas fotos ou nos comentários. Fez uma oração singela entregando aquele momento festivo nas mãos de Deus, como entregara, por anos, o serviço. Concluiu pedindo que aquela alegria fosse espalhada por todo o Planeta Terra. Uma prece típica de Dona Marly! Atípica foi uma lágrima que eu vi rolar e que justificava a voz incomumente embargada com que falou a seguir:

Quando nasci em 1951, em Dores do Rio Preto, minha mãe Dona Nair, me deu a oportunidade de participar de uma família que me ensinou a amar o Trabalho e a Vida. Quando vim para Vitória, trabalhar no Banco do Brasil, eu ainda sonhava, igualzinho a menina que eu tinha sido, sonhava em fazer alguma coisa muito bem feita, mas muito bem feita mesmo, que pudesse encantar as pessoas e fazer muita gente feliz. Percebi que nos meus fins de semana eu conseguia ver um grande sorriso nas pessoas quando comiam meus doces e quitutes, especialmente no olhar de meus filhos. A vida nem sempre era fácil e ficava sempre mais facilitada depois daquele sabor doce, que lembrava as coisas boas do campo e da terra, o fogão e as conversas de cozinha. Minha filha começou a vender. Eu fui aprimorando a receita.  Mas, o  fato  é  que  desde  o início, quando o Pão de Mel da Marly  nem era ainda uma pequena indústria, de lá até aqui, sempre quis que as pessoas se sentissem muito felizes de comer algo muito bom, feito com muita alegria. Não usamos conservantes de nenhuma forma em nossos produtos. Tudo é feito diariamente, de acordo com as encomendas. Uso desde o início a mesma marca de chocolate, ajustei apenas o percentual do amargo. Nosso doce de leite é puro, nosso açúcar mascavo, sempre fresco, vem de meu primo, que mora em Araraí, distrito de Alegre, e nosso mel é do mesmo apicultor de Viana todos esses anos. Nossos colaboradores são treinados com nosso afeto e gratidão. Nossos clientes são nosso maior patrimônio e cada entrega nos gera uma alegria de saber que fizemos nosso melhor. Os recheios eu inventei de cabeça mesmo… e o segredo…

 Dona Marly pigarreou de novo… André temendo que ela fosse dizer o que não queria interviu:

Mãezinha, se não quer dizer não diga!  Não me importo de não ser o único filho que não sabe fazer!”

A risada geral descontraiu o ambiente.

Dona Marly o olhou com amor imenso… trocou olhares com a Mariana que lhe acenou que sim com a cabeça… virou-se então para Luana que certificou a mãe com um sorriso… e precisou enxugar as lágrimas da Tatiana ao seu lado… enquanto dirimia as dúvidas de revelar… e, então prosseguiu:

O segredo de minha receita para o Pão de Mel desta Marly aqui…   é meu medo.

 A revelação não podia ter sido mais decepcionante! Esperávamos de tudo, menos aquilo! Eu tinha minhas tolas convicções que era o anis. Ao meu lado a cozinheira, Dona Maria, que nunca soube o segredo de preparar a base da massa, falou bem baixinho:

“Gente eu tava aqui crente que ela ia dizer que é importado alguma coisa para aquela massa, uma coisa que nunca vi, para ficar bão daquele jeito… agora isso?? Medo sô! Por causa de quê? E, como ela, cada um ali tinha um palpite, mas nada chegava perto daquela revelação! Medo! Ficamos todos mudos.

Foi Michela que rompeu o silêncio:

“Tia como pode o medo dar num Pão de Mel tão bom?”

Respondeu Dona Marly, muito calma:

O segredo está nas proporções querida. Todos os dias eu tenho medo de errar. Mas, não muito. Só um pouco. Sem medo eu poderia achar que já sei fazer, que já fiz 1000 vezes, e justo aquele cliente poderia receber um Pão de Mel de inferior qualidade. Ingrediente fresco, sabe como é, a Vida requer cuidado. Se eu tiver medo demais… ah… nada é mais paralisante que medo em demasia. Eu tenho de adicionar os ingredientes com um pouquinho de medo para não errar, e sem tanto medo que me impeça de fazer uma massa nova, fresca e viva a cada vez!

A cozinheira Dona Maria não se aguentou e então, as 12:25, falou alto para todos ouvirem: “Mas não é só isso não!!”

E um coro de amigos repetiu: “Fala então Dona Marly!! O que mais?”

E ela deu uma risada tímida, típica da Dona Marly e acrescentou:

Ao terminar antes de ir para o forno, quando eu confiro pela última vez se a receita TEM TUDO O QUE PRECISA E NÃO TEM NADA DEMAIS, eu peço a Deus que nos abençoe, sempre, e que deixe meu medo sempre do tamanho certo.

 

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REFERÊNCIA:
MARCONDES, kathy. O segredo da receita. https://kathymarcondes.com.br/psi/ideia/textos-para-fim-de-ano/o-segredo-da-receita/