Relatos de viagem à procura do Self

INTRODUÇÃO DO LIVRO “Os pés alados de Mercúrio”

por Luis Pellegrini

Eu tinha dez anos de idade quando meus pais, num acesso de luminosa clarividência – ou de temerária irresponsabilidade, segundo alguns parentes –, decidiram autorizar que viajasse sozinho. Claro, não era para dar a volta ao mundo, mas apenas para superar os escassos duzentos quilômetros que separam a cidade onde nasci, São Carlos, no interior paulista, de Franca, onde morava uma tia. Apesar da modéstia do percurso, essa aventura deixou em mim uma marca indelével e fez desabrochar uma paixão por viagens que cresceu mais e mais com o decorrer do tempo.

Lembro-me como se fosse agora. Às duas da madrugada meu pai me fez subir num velho trem da Companhia Paulista, instalou-me numa cabine, me fez um afago de despedida no cabelo e mal teve tempo de voltar a plataforma. O trem apitou e partiu, e da janela eu vi a carinha meio angustiada do meu velho e a sua mão me acenando sem parar.

O trem penetrou na escuridão da noite. E eu, encolhido no fundo de uma poltrona, a examinar com o rabo dos olhos o ambiente ao meu redor. Era uma cabine no velho estilo, toda forrada de madeira avermelhada, e no teto havia um lampadário com arandelas de metal preto, terminadas por grandes flores de vidro. Comigo, na cabine, estavam três rapazes fardados, saídos de alguma escola militar da capital e de volta às cidades de origem para passar férias. Riam muito e falavam alto, com aquele arroubo que só ostenta quem ainda se sente senhor do mundo.

Os assuntos não podiam ser outros: futebol, automóveis, mulheres e incríveis bandalheiras. Eram fortões e eu parecia um nanico em meio a jogadores de basquete. Mesmo assim, rapidamente me adotaram, e apesar de não me deixarem provar das brahmas que enxugavam meio em segredo, com medo de algum oficial a passar pelo corredor, acabaram me oferecendo uma coca-cola semigelada. Eu ouvia cada vez mais fascinado as histórias que me contavam. Quase tudo papo-furado, lorotas inventadas pela vaidade juvenil. Mas casa uma daquelas histórias chegava a mim como um raio de luz diretamente desprendido da cidade grande. Elas me revelavam coisas assombrosas que aconteciam nas metrópoles que eu um dia viria conhecer.

E foi assim, que de modo inesperado, no decorrer de uma viagem noturna de trem, fui iniciado nos mistérios do mundo masculino. Saí de São Carlos e era um menino. Quatro horas depois, ao chegar a meu depois, ao chegar a meu destino já era homenzinho feito.

Viagens são assim: oportunidades de iniciação. Essa é a sua magia.

Mas é bom dizer desde já que as viagens com sentido iniciático não são apenas aquelas feitas no mundo de fora. Mais tarde vim a descobrir que viagens no mundo de dentro podem perfeitamente produzir o mesmo efeito. Como as viagens que fazemos nos nossos sonhos, ou mesmo nos devaneios quando despertos.

Viajar, pelo mundo ou dentro de si mesmo, é fundamental para os processos de crescimento pessoal e do autoconhecimento. Por quê? Em primeiro lugar, porque tomar contato com lugares desconhecidos, pelo simples fato de tirar a pessoa do seu cotidiano habitual, obrigando-a a estar mais desperta e atenta, representa a oportunidade de pôr em prática a capacidade de adaptar-se a situações novas. Adaptabilidade é o melhor sinônimo de inteligência: sem essa capacidade de adaptação aplicada a qualquer situação da vida, não se vai longe no aprendizado da relação harmoniosa consigo mesmo e com o mundo.

Terá a viagem, em si mesma, algum sentido de tipo espiritual? Será ela um ato sagrado?

Na época do turismo de massa, que se desenvolve até uma nova área científica chamada sociologia do turismo, será ainda possível distinguir o valor simbólico original que leva uma pessoa a viajar, a abandonar temporariamente o conhecido em troca do desconhecido?

Qualquer psicólogo, filósofo ou poeta sabe que o simbolismo da viagem, num enfoque ao mesmo tempo psicológico e transcendental, representa a procura e a descoberta de um centro espiritual interno. Aquilo que Jung chamava de self e Gautama Buda de eu superior. A viagem exprime também um desejo profundo de transformação interior que se projeta no desejo da viagem exterior. Representa, mais que um simples deslocamento físico no espaço e no tempo, a necessidade de experiências novas e renovadoras. Como consequência, entende-se que estudar, investigar, procurar intensamente o novo e o oculto, são também modalidades de viajar, ou seja, equivalentes espirituais e simbólicos da viagem.

Viagem, definida de outro jeito, é transformação pelo movimento. E todo movimento que acontece em nossa vida converge de algum modo para aquele centro espiritual interno. […]

Partir para o desconhecido pode ser assustador. Mas, para quem tem na alma a inquietude do vento, o desejo da descoberta supera o medo e instiga a caminhada. Empurra o peregrino em direção à meta sagrada e secreta, seu Shangri-lá pessoal. 

Toda viagem é um ato sagrado, e todo o viajante é um herói inquieto. Quem viaja busca, mesmo sem o saber, o seu próprio self, a conexão com alguma forma de divindade. Por isso tantas epopéias religiosas e espirituais estão ligadas a idéia de viagem. Os cavaleiros medievais em busca da Terra Santa ou do Santo Graal; os argonautas gregos à procura do velocino de ouro; o herói Ulisses na sua odisséia de retorno à ilha de Ítaca; os peregrinos de todos os tempos e lugares que vão a Roma, a Santiago de Compostela, a Jerusalém, ao santuário de Aparecida do Norte ou ao Convento da Penha; todos caminham em direção ao centro espiritual interno, a seu self.

Os verdadeiros viajantes são aqueles que partem por partir”, disse o poeta Baudelaire, definindo de modo exemplar a figura do peregrino. Os peregrinos constituem um tipo especial de viajantes que aparentemente viajam para atingir lugares que se encontram do outro lado: santuários, templos, cidades, montanhas sagradas. Mas o peregrino não vai a eles apenas por curiosidade, ou para se divertir ou descansar. O que o atrai, na verdade, é a qualidade especial das experiências que lhe é possível viver no decorrer dessas viagens. Por isso a viagem como experiência sagrada e iniciática acontece em todo o seu percurso, e não apenas no seu ponto de chegada.

Por outro lado, o encantamento, a sensação de viver alguma coisa inteiramente nova e diversa que distingue a experiência sagrada da experiência profana, manifesta-se mais facilmente no tempo liberado do trabalho e dos empenhos cotidianos. Não porque o trabalho e as experiências cotidianas não possam ser consideradas experiências sagradas e iniciáticas. Mas porque tendemos a desempenhá-las como robôs, num estado de automatismo e semi-consciência. A experiência verdadeira do sagrado só pode ocorrer à luz da consciência bem desperta.

Na viagem do peregrino, o nome, a língua, os hábitos mudam. As amizades ficam interrompidas. O viajante está só no mundo. Começa assim aquele processo simbólico de regeneração psicológica e espiritual que é um dos objetivos principais de todo o peregrino com conhecimento de causa.

Todo peregrino experiente sabe também que a ânsia de chegar a algum lugar compromete a viagem de valor iniciático. As verdadeiras experiências que enriquecem e ampliam os níveis de consciência individual costumam ocorrer durante e ao longo do percurso. A chegada ao lugar do destino pode ser apenas um coroamento, e nem sempre é a coisa mais importante da viagem de peregrinação. Se partirmos depositando toda nossa expectativa nas eventuais gratificações que nos esperam ao atingirmos o alvo final, estaremos desatentos e perderemos a miríade de pequenas e grandes vivências que nos aguardam perfiladas ao longo das estradas.

Cada viagem representa a possibilidade de uma nova descoberta, como foi para mim aquela viagem de trem da minha infância.

A importância da viagem no processo iniciático das diferentes religiões e escolas de sabedoria, tanto ocidentais quanto orientais, foi sempre amplamente reconhecida e preconizada. Algumas escolas esotéricas impõem a seus membros que viagem continuamente. De modo geral considera-se que a fixação do noviço em hábitos cotidianos e repetitivos constitui um deletério, fatos de “adormecimento” que entorpece e até impede o processo de “despertar” espiritual.  Viagens súbitas, inesperadas, e às vezes temerárias nas quais o noviço se vê subitamente atirado, costumam fazer parte de uma série de provas preparatórias para as etapas mais avançadas da iniciação.

Mas é importante saber que a verdadeira viagem iniciática acontece no interior do próprio ser. Estimula-se a viagem no mundo exterior pelo simples fato de que, pelo menos nas etapas iniciais do processo de iniciação, é muito mais fácil ver, e experimentar e compreender no mundo objetivo de fora, aquilo que na realidade ocorre no mundo subjetivo de dentro. Existe uma relação muito estreita entre esses dois mundos: um é o reflexo do outro. Toda viagem no mundo exterior corresponde, de algum modo, a uma experiência no mundo interior. E toda a aventura no mundo interior modifica a nossa percepção do mundo exterior. Convém ter sempre isso em mente quando se colocar o pé na estrada, para que o aproveitamento seja o melhor possível!

A moderna psicologia, em especial a psicologia analítica, aproxima-se notavelmente das grandes escolas de crescimento espiritual. Ambas defendem a idéia de que, para a psique, tanto faz se a experiência acontece no plano da realidade concreta do mundo (objetivamente) ou no plano da fantasia, do sonho e da imaginação (subjetivamente). Nos dois casos o resultado final como vivência psicológica é o mesmo. Nossa psique não conhece a diferença entre o que se vive fora e o que se vive dentro. […]

E os turistas de férias, os viajantes de fim de semana cujo objetivo declarada resume-se à vontade de respirar ar puro ou tomar um simples banho de mar, estarão cumprindo, sem o saber, algum rito secreto de transformação e crescimento interior através do movimento da viagem? Certamente. O desejo de movimento está associado a dinâmica da vida, assim como a inação se associa a rigidez da morte. Tudo o que vive, muda. Toda a viagem nos faz ter mais consciência de que nos movemos, mudamos, enfim, de que estamos vivos e em processo…

Toda viagem implica movimento, e todo o movimento é, em última análise, uma viagem. Até um simples passeio ao redor do quarteirão pode ser tremendamente enriquecedor. Com uma condição: que seja feita com a consciência desperta, com os sentidos ligados, com o coração limpo, das crianças. Quando nos acostumamos a viajar desse modo, a vida, mesmo em seus episódios mais banais, transforma-se numa permanente e excitante viagem. E cada um de nós num peregrino da existência. 

REFERÊNCIAS

PELLEGRINI, Luis. Os pés alados de mercúrio: relatos de viagem à procura do Self. São Paulo: Axis Mundi. p. 11-17.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Este livro de Pellegrini é inteiramente delicioso de se ler, perfeito do início ao fim. Acima a Introdução cumpre o papel mais perfeito de uma introdução: nos damos conta do que vem pela frente! Se toda a viagem pode ser, para o viajante alerta e desperto, a possibilidade do testemunho das mudanças – inclusive da própria – essa introdução ao livro nos introduz às nossas próprias lembranças e esperanças sobre as viagens que fizemos e as que queremos fazer. Porém, uma coisa fica claro depois de ler essa introdução, não conseguiremos mais menosprezar a potencialidade de viajar dentro ou fora de nós! Após termos vivido 2020, o ano da pandemia, o sentido e a importância de viajar se faz completamente emblemático pois vivemos e sentimos os efeitos dessas restrições de nosso ir e vir. Efeitos positivos e negativos, conforme estivéssemos mais ou menos conscientes da grande mudança que ali estávamos vivenciando juntos e individualmente. Viajar significaria, doravante, um ato de liberdade que se tornou mais consciente, mais emoldurado em sua complexa relação com todos os estrangeirismos desse nosso mundo. O livro de Pellegrini já sabia o que nós todos agora também sabemos. Viajar é iniciático. Não poder viajar, também.