“As esquisitices do amor” um alerta bem humorado de Martha Medeiros

AS ESQUISITICES DO AMOR 

por Martha Medeiros

Eu estava quieta, só ouvindo. Éramos eu e mais duas amigas numa mesa de restaurante e uma delas se queixando, pela trigésima vez, do seu namoro caótico, dizendo que não sabia por que ainda estava com aquele sequelado etcetera, etcetera. Estava planejando terminar com o cara de novo, e a gente sabia o quanto essa mulher sofria longe dele. Eu estava me divertindo diante desse relato mil vezes já escutado: adoro histórias de amor meio dramáticas. Foi então que a terceira componente da mesa, que é psicanalista, disse a frase definitiva:

“Eu, se fosse você, não terminava. Às vezes ficamos mais presas

a um amor quando ele termina do que quando nos mantemos na relação”.

Tacada de mestre.

A partir daí, começamos a debater essa inquestionável verdade: em determinadas relações, ficamos muito mais sufocadas pela ausência do homem que amamos do que pela presença dele. Creio que vale para ambos os sexos, aliás. Um namoro ou casamento pode ser questionado dia e noite:

será que tem futuro?

será que vou segurar a barra de conviver com alguém tão diferente de mim?

será que passaremos a vida assim, às turras?

Óbvio que não há respostas para essas perguntas, elas são feitas pelo simples hábito de querer adivinhar o dia de amanhã, mas a verdade é que mesmo sem certificado de garantia, a relação prossegue, pois, além de dúvidas, existe amor e desejo. E isso ameniza tudo. Os dois estão unidos nesse céu e inferno. Até que um dia, durante uma discussão, um dos dois se altera e termina tudo. Alforria? Nem sempre.

Aí é que pode começar a escravidão.

Nossa amiga queixosa, a da relação iôiô, perdia o rumo cada vez que terminava com o namorado. Aí mesmo é que não pensava em outra coisa. Só nele. Não conseguia se desvencilhar, mesmo quando tentava. Todas as suas atitudes ficavam atreladas a esse homem: queria vingar-se dele, ou fugir dele, ou atazaná-lo – cada dia uma decisão, mas todas relacionadas a ele. Só quando reatavam (e sempre reatavam) é que ela descansava um pouco desse stress emocional e se reconciliava com ela mesma.

Eu nunca havia analisado o assunto por esse ângulo. Sempre achei que a sensação de asfixia era derivada de uma união claustrofóbica e a sensação de liberdade só era conquistada com o retorno à solteirice. Mas o amor, de fato, possui artimanhas complexas.

Minha amiga finalmente terminou sua relação tumultuada e hoje está vivendo um casamento mais maduro e sereno. Aquele nosso papo foi há alguns anos, mas nunca mais esqueci dessa inversão de sentimentos que explica tanta angústia e tanta neura.

Por que temos urgência de abandonar um amor pelo fato de ele não ser fácil?

Quem garante que sem esse amor a vida não será infinitamente mais difícil?

Às vezes é melhor uma rendição do que fugir de um amor que não foi vivido até o fim. Foi isso que nossa amiga psicanalista quis dizer durante o jantar: não antecipe o término do que ainda não acabou, espere a relação chegar até a rapa, e aí sim.

14 de setembro de 2008

REFERÊNCIA:

MEDEIROS, Martha. Feliz por nada. 5. ed. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 34-35

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Certa vez ouvi de uma “amiga” que a ilusão que vivemos numa relação amorosa pode ser tão mais generosa e confortável conosco que a desilusão de conhecer essa pessoa de verdade e aí separar-se dela. Talvez aquela amizade tenha acabado ali. Era difícil demais ouvir a verdade nua e crua. A desilusão que eu vivia, por uma escolha, era dolorosa demais e se houvesse um gênio da lâmpada que pudesse mudar o passado eu o mudaria imediatamente para não mais ter a coragem de agir conforme o conhecimento exigia. Se pudesse voltar atrás eu continuaria iludida. Iludida e feliz. Enganada e curtindo os dias bem “carpe diem”. Mas… tempo é algo inexorável… o ativo mais precioso… mais caro… não volta. Fez tá feito. Falou, tá falado. Aquele passado não voltou. A desilusão prosseguiu. Esta sim… foi até o fundo. Às vezes é a relação que precisa “gastar-se” até o fim para que não tenhamos arrependimentos. Às vezes é a desilusão que tem de ser enfrentada com todos os seus desencantos. Em qualquer das duas alternativas que incluem o final de uma relação de amor, a reparação de um amor passa por outro; outro amor que consuma essa energia de conexão tão poderosa. Se houver um outro amor mais maduro na vida de quem perde sua grande escolha amorosa, às vezes de uma vida inteira, ótimo! Se ainda deu tempo de construir uma nova e sólida relação, verdadeiramente: que bom. Mas o amor, aquele “outro” amor capaz de curar e regenerar nosso coração não é nunca esse amor binário, entre nós e um outro – qualquer que seja. O amor que cura é o próprio… aquele que estava enraizado em centenas de pequenas dificuldades e experiências que precisavam ser revistas para que pudéssemos nos amar exatamente como somos, como pudemos ser, como nos ocorreu sobreviver sendo, como conseguimos ser. Quando este tipo de compreensão sincera e profunda ocorre, este amor nos cura de nossas (antes necessárias) ilusões. Este amor permite-nos, a partir dele, vínculos muito mais saudáveis pelo uso dessa energia de conexão de forma plena e livre de contratos e balanças comerciais entre amantes. Se o mundo está num grão de areia, como diz o poeta, o amor do mundo inteiro bate no peito de cada um. Essa forte descoberta nos permite não fugir e nem sofrer. Ser quem somos nos recompensa com um amor suave e gentil com nosso tempo… o preciosíssimo tempo de ser nós mesmos!