Cena de amor

por Rubem Alves

Entre os poucos livros que tenho ao alcance da mão, na minha estante, está a estória do amor de Tomáz e Tereza, que Milan Kundera conta em A Insustentável leveza do ser. Tomáz tinha tido muitas amantes. De todas as suas aventuras amorosas “sua memória só registrava o estreito e íngreme caminho da conquista sexual. Todo o resto (com um cuidado quase pedante) eliminara da memória.” “Aventuras amorosas”: Tomáz, na realidade, nunca estivera apaixonado. O seu horror ao amor era tal que nunca permitia que uma mulher dormisse no seu apartamento. A idéia de acordar pela manhã ao lado de qualquer mulher o incomodava tanto que, terminada a orgia sexual, Tomáz encontrava sempre uma forma de levar a parceira de volta à casa. Ele se parecia com o sultão d’As mil e uma noites: depois de uma noite de prazeres carnais, a amante era decapitada… Era assim que Tomáz se via, como animal caçador que abandona a caça tão logo sua fome tivesse satisfeita.

Mas com Tereza tudo tinha sido diferente. Não que Tereza tivesse algum traço especial, que a distinguisse das outras. Por mais que a examinasse, nada encontrava nela que pudesse ser apontado como a razão para o seu amor. E, no entanto, sem razões, o fato era que ele estava apaixonado por ela.

Sua aventura com Tereza tinha começado exatamente onde terminavam suas aventuras com as outras mulheres. Ela se desenrolara do outro lado do imperativo que o levava à conquista. Conhecera Tereza acidentalmente num bar de cidadezinha do interior. Dissera-lhe, quase como uma brincadeira, que se fosse à capital que o procurasse. E lhe dera o seu endereço. Tereza foi e o procurou. Chegara à capital doente e não sabia para onde ir. Foi aí que a história de amor começou. Ela estava ardendo em febre, adormecera no sofá da sala, e ele não pudera levá-la de volta como fazia com as outras. Para onde a levaria? Ajoelhado à sua cabeceira “ocorrera-lhe a idéia de que ela viera para ele numa cesta sobre as águas”.

Agora, à distância, pensava sobre as razões do seu amor e fazia, sem que disso se desse conta, a insólita pergunta de Santo Agostinho: “Que é que amo quando amo Tereza?” Tudo se tornava claro de repente. Foi pela beleza desta cena que ele se apaixonara: Tereza, criança amedrontada, chegando aos seus braços com um pedido de socorro. “A mulher não resiste à voz que chama a sua alma amedrontada; o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz.”

Parece que existe no cérebro uma zona específica, que poderíamos chamar de memória poética, que registra o que nos encantou, o que nos comoveu, o que dá beleza à nossa vida. Desde que Tomáz conhecera Tereza, nenhuma outra mulher tinha o direito de deixar a marca, por efêmera que fosse, nessa zona do seu cérebro.

Agora, na sua memória poética, aquela cena permanecia imóvel, imperturbável, fora do tempo. Era uma parte da sua alma. Não morreria jamais. Vinícius de Moraes percebeu que o amor pela mulher não é eterno, posto que é chama. Mas ele não percebeu que o amor pela bela cena permanece para sempre, pois “o que a memória amou, fica eterno”.

Que é que amo quando te amo?” Tomáz amava Tereza porque amava antes uma outra coisa: aquela cena bela e comovente que repentinamente brilhara em sua imaginação. A mulher que ele amava era a Tereza daquela cena: a criança amedrontada que lhe chegava numa cesta sobre as águas. Tereza poderia abandoná-lo, deteriorar-se ou morrer. Mas a cena permaneceria inalterada, suspensa na memória poética, como objeto de amor.

Amamos a bela cena antes de amar a pessoa. Por isto que Santo Agostinho dizia, em suas Confissões: “Antes que te conhecesse eu já te amava.” Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou com o homem que será o objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo antes do primeiro encontro. Sua memória poética sabe que ele existe.

A alma é uma coleção de belos quadros adormecidos, os seus rostos envolvidos pela sombra. Sua beleza é triste e nostálgica porque, sendo moradores da alma, sonhos, eles não existem do lado de fora. Vez por outra, entretanto, defrontamo-nos com um rosto (ou será apenas uma voz, ou uma maneira de olhar, ou um jeito da mão…) que sem razões, faz a bela cena acordar. E somos possuídos pela certeza de que este rosto que os olhos contemplam é o mesmo que, no quadro, está escondido pela sombra. O corpo estremece. Está apaixonado.

Acontece, entretanto, que não existe coisa alguma que seja do tamanho do nosso amor. A nossa fome de beleza é grande demais. Neruda dizia que ele seria capaz de devorar o universo inteiro. Nas palavras de Adélia Prado, “para o desejo do meu coração o mar é uma gota”. E o amor se revela então como a coisa mais triste. Cedo ou tarde descobrirá que o rosto não é aquele. E a bela cena retornará à sua condição de sonho impossível da alma. E só restará a ela alimentar-se da nostalgia que rosto algum poderá satisfazer…

REFERÊNCIA:

ALVES, Rubem. O retorno e o terno. 13. ed. Campinas: Papirus, 1992. p. 35-37.

COMENTÁRIO:

Para quem gosta de cinema esse filme honônimo ao livro comentado acima é imperdível, maravilhoso. As cenas reais da Primavera de Praga, em preto e branco, são mixadas às cenas dos atores e revivemos todo a veracidade do drama histórico potencializando aqueles personagens tão radicalmente humanos. Eles amam. Cada um a seu modo. Há uma cena onde os dois, Tomáz e Tereza, acima tão bem retratados pelo Rubem, os dois perdem algo que amam. Aquela perda comum abre uma ferida comum… e eles se curarão muito lentamente… A vida lhes aparecerá em todo o seu esplendor… rápida demais para querermos que seja “perfeita”. Os casais que se esmeram em aprender a serem SINCEROS tem infinitamente mais chances de permanecerem juntos, reforçando essa amizade dia a dia em suas vidas, do que os casais que querem (ou quando UM deles quer) que a relação e/ou o outro seja perfeito. Muita vida será desperdiçada na busca da perfeição. Melhor seria o sofrimento de uma separação que abre para a compreensão da urgência de se viver a gratuidade da vida, do que um casal que – ficando junto – celebra a morte da espontaneidade de ambos. Se houver a alegria de um e a morte-lenta do outro, aí já estamos falando de crueldade. Não é mais sustentável e antes de ser uma escolha de viver, permanecer numa relação tão dessemelhante de alegria, é uma opressão a natureza primeira da vida: a de refazer-se continuamente. Viver e amar constituem intensidades muito poderosas quando são vividas na plenitude. Quando o amor impede a vida de ser vivida o seu poder devastador equivale à morte. Escolher viver é escolher não morrer de ou por amor. Sobreviva. E a vida se reestruturar por pura natureza de ser assim. Assim será. Sustentável é a vida. Insustentável é sofrer até morrer de sofrimento.