“Os tipos de pessoas” extrato poético de Gibran acerca da qualidade do viver

OS TIPOS DE PESSOAS

por Khalil Gibran

A fama de Almuhtada se espalhou por todo o país e muitas pessoas provenientes de outras nações vieram a ele prestar reverência e ouvir o porta-voz do mestre

Médicos, juristas, poetas e filósofos lhe dirigiam uma avalanche de perguntas sempre que o encontravam – nas ruas, na igreja, na mesquita, na sinagoga ou em qualquer outro lugar em que se reunissem. Suas mentes se enriqueciam com seus belos discursos, que passavam de boca a boca. 

Ele lhes falava da vida e da realidade da vida, dizendo: 

“O ser humano é como a espuma do mar que flutua na superfície da água: quando o vento sopra, ela some, como se nunca tivesse existido. Assim são nossas vidas vencidas pela morte. 

“A realidade da vida é a própria vida, cujo começo não é no útero e o fim não é no túmulo, pois os dias que transcorrem não passam de um momento na vida eterna. O mundo da matéria e tudo que nele está encerrado são somente um sonho comparado ao despertar – que chamamos de terror da morte

“O éter carrega todo riso, todo suspiro proveniente de nossos corações, e preserva seu eco, que responde a todo beijo cuja fonte é alegria. 

“Os anjos computam toda lágrima derramada por força da tristeza e transmitem aos ouvidos dos espíritos que pairam nos céus do infinito cada canção de alegria feita de nossas afeições. 

“Lá, no mundo vindouro, perceberemos e sentiremos todas as vibrações de nossos sentimentos e os impulsos de nossos corações. Entenderemos o sentido da divindade no interior de nós, divindade que desprezamos por sermos movidos pelo desespero. 

“A ação que, em nossa culpa, denominamos hoje fraqueza –  surgirá amanhã como um elo essencial da corrente completa do ser humano. 

“As cruéis tarefas pelas quais não recebemos nenhuma recompensa viverão conosco, revelarão seu esplendor e farão a proclamação de nossa glória. E os sofrimentos que suportamos serão como uma coroa de louros sobre nossas cabeças honradas.” 

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Após proferir essas palavras, o discípulo estava prestes a se afastar da multidão e repousar o corpo das fadigas do dia quando observou um jovem que fitava uma linda moça, com olhos que refletiam perplexidade. 

Ele se dirigiu ao rapaz, dizendo:

“Está confuso devido aos muitos credos professados pelo ser humano? Está perdido no vale das crenças em conflito? Pensa que a liberdade do herege é um fardo menor do que o jugo da submissão e que a liberdade da dissidência é mais segura do que a fortaleza da aquiescência? 

“Se esse for o caso, faça então da beleza sua religião e a venere como sua divindade, pois ela é a obra manifesta e perfeita de Deus. Livre-se daqueles que brincaram com a religiosidade como se fosse uma impostura, combinando cobiça e arrogância. Em vez disso, creia na divindade da beleza, a qual é simultaneamente o começo de sua adoração da vida e fonte de sua fome de felicidade

“Faça penitência perante a beleza e resgate seus pecados, porquanto a beleza aproxima seu coração do trono da mulher, o qual é o espelho de suas afeições e o mestre de seu coração nos caminhos da natureza, que é onde sua vida tem domicílio.”

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Antes de dispensar o povo reunido, acrescentou: 

“Há dois tipos de pessoas neste mundo: as de ontem e as de amanhã. A que tipo vocês pertencem, meus irmãos? Venham e me deixem olhá-los de perto para saber se são daqueles que ingressam no mundo da luz ou daqueles que avançam rumo à região das trevas. Venham e me digam quem vocês são e o que são. 

“São políticos que dizem a si mesmos: ‘Vou me servir de meu país para meu próprio benefício’? Se for assim, não passam de parasitas a se nutrir da carne alheia. Ou são patriotas dedicados, que murmuram ao ouvido de seu eu interior: ‘Muito me agrada servir ao meu país como um servo fiel’. Se esse for o caso, são um oásis no deserto, prontos para saciar a sede do viajante. 

“Ou são mercadores que tiram vantagem do povo necessitado, monopolizando mercadorias para revendê-las a um preço exorbitante? Se for isso, são uns patifes, independentemente de morarem num palácio ou numa prisão. 

“São pessoas honestas, que permitem ao fazendeiro e ao tecelão permutarem seus produtos, que servem de mediadores entre comprador e vendedor e que, por meio de uma conduta correta, auferem lucros tanto para si quanto para os outros? Se esse for o caso, são pessoas justas, não importando se são objeto de louvor ou de reprovação. 

“São líderes religiosos que tecem uma veste escarlate para o corpo com base na simplicidade dos fiéis, que confeccionam uma coroa de ouro para a cabeça com base na bondade deles e que, enquanto vivem na fartara de Satã, vomitam seu ódio por ele? Se for o caso, são hereges, independentemente de jejuarem o dia inteiro e rezarem a noite inteira. 

“Ou são criaturas humanas dotadas de fé que, na bondade do povo, encontram a base do aprimoramento de toda a nação e cuja alma é a escada da perfeição que conduz ao Espírito Santo? Se forem tais criaturas, são como um lírio no jardim da verdade, e não importa se a fragrância de vocês se perde entre os homens ou se dispersa no ar, onde será eternamente preservada. 

“São jornalistas que vendem seus princípios nos mercados de escravos e que engordam à custa de mexericos, infelicidade e crime? Se for esse o caso, assemelham-se a abutres vorazes cuja presa é carniça apodrecida. 

“Ou são professores postados no patamar elevado da história que, inspirados pelas glórias do passado, pregam à humanidade e agem segundo o que pregam? Sendo esse o caso, são um tónico para a espécie humana doente e um bálsamo para o coração ferido. 

“São governantes que não atribuem valor e respeito aos governados, jamais se ocupando com a atividade externa, a não ser para saquear as bolsas dos governados ou explorá-los para o próprio lucro? Se assim for, são como pragas na eira da nação. 

“Ou são servidores dedicados que amam o povo e estão constantemente zelando pelo bem-estar dele, ciosos em relação à prosperidade da população? Se for assim, são como uma bênção nos celeiros do país. 

“São maridos que têm os próprios erros cometidos na conta de lícitos, mas tratam os das esposas como ilícitos? Se a resposta a isso for afirmativa, assemelham-se àqueles selvagens de tribos extintas que viviam em cavernas e cobriam o corpo nu com peles de animais. 

“Ou são companheiros fiéis, cujas esposas se mantêm sempre ao seu lado, compartilhando cada uma de suas ideias, dos seus arrebatamentos e das suas vitórias? Se assim for, são como alguém que à aurora caminha na liderança de uma nação rumo ao meio-dia em ponto da justiça, da razão e da sabedoria. “São escritores que erguem orgulhosamente a cabeça acima da multidão, enquanto seus cérebros mergulham no abismo do passado atalhado de farrapos e rebotalhos inúteis das eras? Se for assim, são como uma lagoa de água estagnada. 

“Ou são pensadores argutos que examinam o próprio eu interior, descartando aquilo que é inútil, desgastado e maléfico, preservando ao mesmo tempo aquilo que é proveitoso e bom? Em caso afirmativo, são como o maná à disposição dos famintos e como água fresca e limpa à disposição dos sedentos.

“São poetas espalhafatosos e que emitem sons vazios? Se forem, são como um desses charlatões que nos levam ao riso ao chorarem e ao pranto quando riem. 

“Ou estão entre essas almas talentosas em cujas mãos Deus depositou uma viola para confortar o espírito com música celestial e aproximar seus semelhantes da vida e da beleza da vida? Se estão, são como uma tocha a nos iluminar em nossa estrada, uma doce saudade em nossos corações e uma revelação do divino em nossos sonhos. 

“Assim a humanidade se divide em duas grandes colunas: uma composta de velhos e curvados – que se sustentam sobre cajados tortos e que, à medida que trilham a senda da vida, ofegam como se estivessem subindo até o topo de uma montanha quando, na verdade, estão descendo ao abismo – e outra composta de jovens que correm como se tivessem pés alados, cantando como se suas gargantas fossem dotadas de cordas de prata, e que sobem rumo ao topo da montanha como atraídos por algum poder irresistível, mágico. 

“A qual desses dois cortejos vocês pertencem, meus irmãos? Façam a si mesmos essa pergunta quando estiverem sozinhos no silêncio da noite. 

“Julguem por si mesmos se estão com os escravos do ontem ou com as pessoas livres do amanhã.”

[…]

O discurso de Almuhtada foi ouvida em todo Líbano. Mais tarde, foi impresso em um livro sobre a forma de epístolas e distribuído na antiga Fenícia em outros países árabes. Algumas das epístolas estão nas próprias palavras do mestre, ao passo que outras por um produto da seleção feita por mestre e discípulo de antigos livros de sabedoria e tradição.

REFERÊNCIA

GIBRAN, Khalil. A voz do mestre. São Paulo: Mantra, 2018. p. 24-29.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Gibran é um grande escritor, conhecidíssimo por sua celebre frase: “vossos filhos não são vossos filhos”, que consta no livro O Profeta (1927). Este texto acima é um extrato do seu menos conhecido livro “A voz do Mestre”  só foi publicado 27 anos após a sua morte, em 1958. Aqui toda a maestria da composição literária, que nele se objetiva mística e artística, está imortalizada nas palavras de um profeta que morre, mas é revisitado e redimido pelo ensino de seu discípulo Almuhtada. Uma das lições que podemos tirar desse riquíssimo texto simbólico é a Vida como uma breve experiência dentro de uma intencionalidade Divina maior e insondável por nós, humanos, a não ser na plenitude de uma vida experimentada como Graça, destemida da Morte e comprometida com a Justiça. Os grandes campos de trabalho da labuta humana são avaliados do ponto de vista espiritual pelo profeta e tem absoluta correspondência, até nossos dias, com as questões atuais que discutem a importância do amadurecimento de todas as nossas sociedades a cerca da sustentabilidade de nossas decisões para o mundo do trabalho, da produção e da transformação dos recursos da Terra em recursos civilizacionais. Magistral e místico. Como Gibran.