“A gente só sabe o que já sentiu” – Arthur da Távola

A verdade é que a gente só sabe o que já sentiu. A gente pensa que sabe o que sente. Ninguém sabe o que ainda não sentiu. Nem o que está sentindo. A gente pode intuir, perceber, atinar; pode até conhecer. Mas saber, jamais. Só se sabe aquilo que já se sentiu. Durante um sentimento é muito difícil saber o que é ele exatamente. 

Só depois.

Não se assuste se não sabe o que está sentindo. Há sentimentos novos. São raros. Mas existem. Porque somos novos a cada sentimento: mudamos, alteramo-nos, transformamo-nos. Por que saber? Simplesmente sentir já não chega? Aquele sentimento que nos desafia a definição, a percepção, é sempre um sentimento verdadeiro, porque novo e, como tal, não sabido por nós. Somos seres capazes de não saber a cada passo. 

Há sempre um não saber em cada descoberta.

Há sempre um novo em tudo o que fazemos. E como o novo assusta a gente, por defesa, rotulamos o sentimento, usando a analogia a situações anteriores para defini-lo ou enquadrá-lo. Um erro! Em verdade a gente só sabe o que já sentiu. Só sabe o que é fome quem já sentiu; só sabe o que é raiva quem já a teve. Só sabe o que é inveja quem já a identificou, a sorrateira. Só sabe o que é ciúme quem já o sentiu, o calhorda. 

Digo isso e insisto porque temos a mania caolha de antecipar sentimentos. 

Somos metidos a saber o que ainda não sentimos.

Você já reparou o quanto as pessoas falam dos outros? Falam de tudo. Da moral, do comportamento, dos sentimentos, das reações, dos medos, das imperfeições, dos erros, das criancices, ranzinzices, chatices, mesmices, grandezas, feitos, espantos. Sobretudo falam do comportamento. E falam porque supõem saber. Mas não sabem. Porque jamais foram capazes de sentir como o outro sente. 

Se sentissem não falariam.

Só pode falar da dor de perder um filho, um pai que já perdeu, ou a mãe que já sofreu tal amputação de vida. Dou este exemplo porque ele ilustra melhor. As pessoas falam da reação das outras e do comportamento delas quase sempre sem jamais terem sentido o que elas sentiram. Como saber o que o escárnio fez numa pessoa? Como descobrir os estragos deixados por pais egoístas, brutos ou super protetores? Como identificar o desamor deixado pelo ele tem que aprender sozinho? 

Como é possível ao bonito saber o que dói na feiura e ao feio saber o que o machuca na beleza?

Como é possível saber exatamente o que é o preconceito de cor para quem nunca o sofreu? Como desvendar as marcas deixadas por frustrações excessivas? Como achar as cicatrizes das invejas não canalizadas para o seu lado positivo? Como saber quem é o outro, na integridade complexa de suas variáveis, sem já ter sentido o que ele sentiu e o fez assim. 

Mas sentir o que o outro sente não significa sentir por ele. Isso é masoquismo. Significa perceber o que ele sente e ser suficientemente forte para ajudá-lo exatamente pela capacidade de não se contaminar com o que o machucou. Se a gente se deixar contaminar (fecundar?) pelo sentimento que o outro está sentindo, como terá forças para ajudá-lo? 

Só quem já foi capaz de sentir os  muitos sentimentos do mundo é capaz de saber algo sobre as outras pessoas e aceitá-las, com tolerância.

Sentir os muitos sentimentos do mundo não é ser uma caixa de sofrimentos. Isso é ser infeliz. Sentir os muitos sentimentos do mundo é abrir-se a qualquer forma de sentimento. 

Inxaminá-los, ou seja, analisá-los dentro (inxaminar é o reverso de examinar, falei?), deixá-los fluir sem barreiras, sem medos, os maus, os bons, os pérfidos, os sórdidos, os baixos, os elevados, os mais puros, os melhores, os santos, em suma todos os sentimentos de que somos dotados.

Só quem deixou fluir sem barreiras, medos e defesas todos os próprios sentimentos, pode sabê-los. 

Mas cuidado. Examine bem esse fluir. Refiro-me a influir, ou seja, fluir para dentro. É erro grave supor que esse fluir deve passar para a vida. Aí a pessoa se esborracha em nome de uma libertação justa. Esse fluir é interno. E influência. O erro é confundir experiência com inperiência. Inperiência é a aventura interior. Através dela podemos e devemos deixar fluir tudo o que venha à mente ou provenha da fantasia. Mas quem transfere o mundo caótico da inperiência em experiência, isto é, passa para o todo da sua vida, para a relação com os demais, aquilo que deve ficar apenas no plano interior, porque interior é quem faz essa inversão, acaba tendo uma peripécia de vida pouco sábia e dolorosa. 

O terrível e o maravilhoso de cada nova geração é ela transformar em experiência o que era uma inperiência.

É passar para a própria vida, em nome de viver, o que é um cortejo de vivências interiores, fantasias, impulsos etc. Para a experiência, ou seja, para a vida cá de fora só devemos deixar passar o que já enfrentou as várias e mutantes alternativas das inperiências. 

O artigo já vai longe, confuso, rico de palpitações e o tema inicial parece esmaecido. Mas não está: a gente só sabe o que já sentiu.

Qualquer forma de conhecimento fora da experiência vivida, ou seja, da inperiência e da experiência em seu troca-troca constante, é teoria, não é vida

Não se assuste quando não sabe o que sente.

Nem se meta a saber o que os outros sentem antes de ter sentido o que eles sentiram. 

Espere florescer a árvore do próprio sentimento.

Vivendo, aceitando as podas da realidade e, se possível, fecundando-as.

REFERÊNCIA:

TÁVOLA, Arthur. A gente só sabe o que já sentiu. Revista do Clube da Aeronáutica. Rio de Janeiro, n. 306, p. 42-43, jan./mar. 2020.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

Nesse nosso mundo cheio de mídias sociais, likes e dislikes, há muitos especialistas de plantão sobre quase qualquer coisa, fato ou acontecimento. Aperfeiçoam-se me minutos. E já possuem “expertise” e “opinião”. As pessoas mais honestas consigo mesmas às vezes até se perguntam se é tão normal e saudável que não consigam formular uma “opinião” e não declarar um conhecimento de coisas que mal ouviram ou sobre as quais se informaram com o ponto de vista de alguma testemunha… mas que não foi visto, experimentado ou suficientemente analisado por si mesmo. A honestidade e sabedoria nos custam, muitas vezes, conhecer nossa ignorância. Julgar qualquer coisa que não experimentamos pessoalmente, atestar coisas que não vivemos ou não temos BASTANTE informações fidedignas e confiáveis (que são duas coisas que, em si, já nos demanda muito tempo para estabelecer com segurança!) é um ato impensado e assodado. Não é preciso ter receio de desconhecer. Socrates ao ser premiado como o homem mais inteligente da Grécia, respondeu espantado; “justo eu que nada sei?”. Sim. Justo ele. Um dos maiores filósofos de todos os tempos tinha humildade para não saber. E, por isso, se informar bem… conhecer profundamente… refletir cuidadosamente… ou… silenciar.