Lições de meu lápis de escrever

por Kathy Amorim Marcondes

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Tudo muda. Tudo impermanece. Essa é “a” lei, e nada – mas nada mesmo! – foge dessa máxima… Então… “escrever” também mudou!

Iniciamos nossa experiência com a escrita cedo, quando crianças na alfabetização, mas nem se passou tanto tempo assim, e na velocidade das mudanças do século XXI, durante nosso próprio tempo de vida… vemos a escrita mudar completamente! São gírias, as expressões de outras línguas, ter se tornado desnecessário muitas das regras que tínhamos sofrido para aprender, a invenção praticamente diária de neologismos e palavras com significados que só os do gueto onde foram forjadas conseguem realmente alcançar… enfim… a língua escrita impermanece… sempre é acrescida da história dos homens e sociedades à sua volta.

Historicamente sabemos que essa é uma invenção humana datada com mais de 6000 anos de existência… escrever era suportado em placas de barro, depois em ossos, pedras… muita água embaixo da ponte depois… o suporte principal se tornou o papiro… e, mudando ainda mais, chegou a vez de escrever sobre o papel mas com uma “máquina” de escrever… asdfg çlkjh… a máquina se tornou elétrica… dali para os teclados de computador de mesa… para os notebooks… tablets… celulares… e, atualmente, de alguma forma quase mágica, basta apenas que falemos em voz alta e alguns dispositivos, sem nem ter fios, já saem sozinhos digitando os sons… prontinho… enfim já nem escrevemos… qualquer dia vamos mandar “imprimir” pensamentos… hahahaha…

Se formos aos museus poderemos ver alguns tesouros e preciosidades do passado… fico imaginando o dia em que um LÁPIS DE ESCREVER estará exposto entre os artefatos como relíquia usada, inacreditavelmente, por muitos anos… por séculos… consumindo-se devagarinho nas mãos de quem escrevia. Até imaginei o que eu “escreveria” para que visitante deste museu soubesse avaliar a importância daquela pequena raridade:

Este é um lápis de escrever. Seu uso como ferramenta de escrita iniciou-se remotamente… nas pontas de galhos de árvores chamuscados, em brasas, que assim serviam aos humanos para marcar. Sua forma simples e perfeita, alcançada apenas no século XVI, um grafite fino, recoberto por madeira, triunfou sobre todas as outras modalidades de grafar por mais de 4 séculos. A produção em escala industrial do crayon (francês), bleistift (alemão),  plumbum (latim), pencil (inglês) ou do lapiz de escribir só foi iniciada em 1622 e só em 1659 é que surge, pela primeira vez a profissão de fabricante de lápis de escrever. Desde então, na água ou espaço sideral, é simplesmente incontável o número de páginas de conhecimento ou beleza já nascidas dos lápis de escrever… que permanecem: totalmente recicláveis, elegantes, belos e (às vezes) sábios!

Reconheço que a mim, em particular, mais que as páginas escritas, ensinaram-me os próprios lápis que usei quando pequena e ainda prefiro na hora de recorro à leitura. Eles me deram profundas lições de caráter utilitário e espiritual:

  • Por mais profunda que seja uma Verdade ou bela que seja uma Obra, a inteligência que as concebe precisará da humildade de uma ferramenta simples, como o lápis, para que possam ser transmitidas e sua importância conhecida ou desfrutada.

Não desprezemos, pois, a valia e o refinamento das coisas simples e de propósito claro.

  • Por melhor que eu escreva a lápis… de vez em quando é preciso usar o apontador. O lápis sofre um pouco, perde de si também um pouco, mas é justo nesse burilamento que ele volta a cumprir inteiramente bem a sua função.

Não desprezemos, pois, a dor e dificuldade momentâneas que nos reconduzem ao caminho do aperfeiçoamento constante.

  • Por mais trabalhoso que tenha sido escrever uma bobagem ou um erro, com uma boa borracha é sempre possível desmanchar o escrito a lápis. Por isso, ofensas e mágoas devem sempre ser escritas a lápis… e o tempo as apagará se não formos sábios para fazê-las com nossa melhor borracha. Pode-se contar com isso: a ajuda do tempo, à lápis. Caneta? Não. Só na muito grande certeza, ensinaram-me os lápis, devo atestar algo que não pode ser revisto nem bem apagado.

Não desprezemos, pois, a longa ponderação antes de assumir definitivamente algo como devido e certo. Escrito a caneta não se pode voltar atrás.

  • Por melhor que seja o sobrescrito num papel apagado, o lápis usado sempre deixa a marca do escrito. A marca é, às vezes, invisível superficialmente no papel, mas sempre aparecerá, caso haja análise mais profunda.

Não desprezemos, pois, o cuidado com o que fazemos (escrevendo) e refazemos (reescrevendo); ainda que revogável… apagável… as marcas íntimas das quais podemos ser a causa, deixam manchas na alvura das dimensões delicadas da existência.

  • Por mais brilhante que seja o verniz exterior de um lápis, o que dele vai nos importar realmente, será sempre o efeito de sua natureza íntima: de seu grafite. Há uma preciosidade incorruptível e duradoura no interior do lápis, do lado de fora temos a sua visualidade… que pode enganar. Mais apreciaremos um lápis quanto melhor este conseguir expressar sua rica natureza interior… quanto mais suave e gentil, receptivo e responsivo a nossa intenção… mais valor terá para nós.

Não confundamos, pois, verniz e aparência – essas dimensões exteriores que enganam aos tolos vendendo o superficial como sendo de valia – com essência e entrega verdadeira – essas dimensões interiores e incorruptíveis que só se revelam nos atos.

Enfim… amo os lápis, criaturas simples e úteis, prestativos e pouco espaçosos, dos quais só lembramos na necessidade. E nos servirão silenciosamente. No plural será lápis, no singular será lápis… um dia pode ser que fique em desuso… hoje, para mim, ainda é um lembrete vivo de que sua vida útil acaba… mas que no fundo o lápis mesmo… esse não morre… apenas cumpre seu destino… mansamente imortalizando seu grafite em significados… mudando… impermanece… como tudo… dentro da Lei.

REFERÊNCIA:

MARCONDES, Kathy Amorim. Lições de meu lápis de escrever. Disponível em: https://kathymarcondes.com.br/psi/solucao/autoaperfeicoamento/licoes-de-meu-lapis-de-escrever/. Acesso em: …