KUNG FU, o seriado de Gafanhoto – comentário de um episódio sobre o medo

O que é Medo?

por Ajahn Brahm

Medo é achar problemas no futuro. Se apenas pudéssemos nos lembrar sempre de quão incerto é o nosso futuro, jamais tentaríamos prever o que poderia dar errado. O medo acabaria aí.

Quando eu era pequeno, morria de medo de ir ao dentista. Um dia eu tinha uma consulta marcada e não queria ir. Preocupei-me à toa. Quando cheguei ao consultório, disseram que a consulta tinha sido cancelada. Foi aí que aprendi que o medo pode ser uma grande perda de tempo.

O medo está dissolvido nas incertezas do futuro. Mas, se não usarmos nossa sabedoria, o medo pode nos dissolver. Ele quase dissolveu aquele jovenzinho que queria ser aprendiz de monge budista, Gafanhoto, naquela série antiga de TV chamada Kung Fu. Eu costumava assistir a essa série obsessivamente no último ano em que dei aula, antes de me tornar monge.

Um dia, o mestre de Gafanhoto, que era cego, levou o aprendiz a uma sala nos fundos do templo que era normalmente mantida fechada. Na sala, havia uma piscina de cerca de 6 metros de largura, com um bambu fino servindo de ponte de um lado a outro. O mestre alertou Gafanhoto para que ficasse longe da beirada da piscina, que não continha água, mas sim um ácido muito forte.

–  Em sete dias – disse ele a Gafanhoto – você será testado. Você terá que atravessar a piscina de ácido se equilibrando sobre o bambu. Mas cuidado! Você está vendo aqueles ossos no fundo da piscina?

Gafanhoto olhou com cuidado e viu vários ossos.

–  Eles pertenciam a jovens aprendizes, como você.

O mestre levou Gafanhoto para fora da sala, em direção ao jardim do templo. Lá, os monges mais velhos tinham colocado um bambu exatamente do mesmo tamanho daquele que havia na piscina de ácido, mas apoiado em dois tijolos. Nos sete dias seguintes, a única tarefa de Gafanhoto foi andar naquele bambu.

Era fácil. Em poucos dias, ele conseguia andar sem balançar, até mesmo com os olhos vendados, percorrendo o bambu do jardim. Então veio o teste.

Gafanhoto foi conduzido por seu mestre até a sala com a piscina de ácido. Os ossos dos noviços que falharam brilhavam no fundo da piscina. Gafanhoto pisou numa das pontas do bambu e olhou ao redor.

–  Ande – ordenou o mestre.

Um bambu sobre o ácido é muito mais estreito que um bambu do mesmo tamanho no jardim. Gafanhoto começou a caminhar, mas seu passo não era firme; ele começou a balançar. Não tinha alcançado nem metade do caminho. Ele mal conseguia se equilibrar. Parecia que ia cair no ácido.

Aí vinham os comerciais.

Tive que suportar todas aquelas propagandas idiotas, morrendo de preocupação e curiosidade para saber se o pobre Gafanhoto conseguiria se salvar.

Os comerciais acabaram e voltamos à sala da piscina de ácido, Gafanhoto começando a perder a confiança. Eu o vi pisar em falso. Ele balançou. E aí, caiu!

O mestre cego caiu na gargalhada, ao ouvir Gafanhoto cair na piscina. Não era ácido, era apenas água. Os ossos velhos tinham sido colocados lá como um “efeito especial”. Eles enganaram Gafanhoto, assim como tinham me enganado.

– O que fez você cair? – perguntou o mestre muito sério. – O medo fez você cair, Gafanhoto, nada mais que o seu medo.

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REFERÊNCIA:

BRAHM, Ajahn. O que é medo? In: _____. Antes que o dia acabe, seja feliz! São Paulo: Fundamento, 2009. p. 38-39.

COMENTÁRIO de Kathy Marcondes:

O texto acima nos fez viajar no tempo… Para quem não viveu as décadas de 70, 80 e 90 do século XX é preciso explicar a magia envolvida na série Kung Fu. A televisão, na época, era o mais inquestionável veículo de informação e entretenimento; com raríssimas exceções com o olhar crítico, a TV era uma espécie de tradutora de tudo que era moderno, chique e relevante de se saber. Nas noites de domingo ver o monge shao-lin Kwai Chang Caine, interpretado por David Carradine, era um programa obrigatório de todo jovem mais “descolado” e aberto para as novidades orientais trazidas pela cultura pop. Entre 1972 e 1975 a série foi produzida e depois assistida com sucesso no mundo inteiro. O sucesso devia-se também, na minha opinião, a força arquetípica de sua personagem principal. Gafanhoto, como seu mestre nas artes marciais o chamava, encarnava o Arquétipo do Herói sempre a procura da justiça e derrotando o que de pior havia nas pessoas do Oeste americano, por onde perambulava. Não usava armas, tentava evitar aborrecimentos, mas não se furtava de defender qualquer oprimido. Solitário usava sua inteligência e habilidades marciais em meio a um ambiente hostil que não o compreendia. Em flashes o Gafanhoto se recordava de seu treinamento no mosteiro para avançar sobre as situações do cotidiano. E nós sofríamos e nos identificávamos todos com aquele compromisso consigo mesmo que ele tinha, sem se deixar tornar indiferente ao sofrimento alheio. Como estamos todos, sempre, necessitando de ter espelhado nosso herói interior, Kwai Chang Caine estava sempre ali suportando nosso heroísmo… e dele éramos torcedores atentos e, nesse aspecto, essa série de TV longínqua não difere das atuais que são assistidas por nossos jovens e nem tão jovens, nos Streamings da vida…

Como ontem… hoje ainda… o medo muitas vezes se manifesta na vida de um jovem e também de pessoas em plena força física e social… um emoção incapacitante e paralisadora que não se justifica aos olhos alheios, mas é de tal veemência no mundo interno de quem a possui que pode até levar a crises de ansiedade ou pânico. O medo pode ser provocado por uma dieta mental incorreta, claro. O consumo de todo o tipo de violência e decadência pelos jovens pode lhes minar as forças psicológicas. O excesso de trabalho e a preocupação excessiva com a vida amorosa ou financeira também podem adoecer a estrutura psicológica. Mas, o que mais determina a experiência do medo como um emoção principal e incontrolável é, via de regra, a incapacidade de perceber as naturais expressões de coragem e valentia que a pessoa já viveu como parte de seu instrumental pessoal. Quem tem medo, muito medo, o que podemos chamar de medo patologicamente dimensionado (ou seja, desproporcional e paralisante), seja de muitas coisas, ou de uma coisa específica, exprime nessa distorção de sua força que algo de sua imagem de si desassociou-se daquela situação. O objeto do medo aponta para uma parte psiquica que, naquela pessoa, está momentaneamente incapaz de superar aquela adversidade suposta, algo naquela pessoas está desconectada da sua coragem habitual, aquela com que se enfrenta o cotidiano. A piscina do Gafanhoto trouxe uma parte dele que temeu não fazer e não saber fazer algo que ele rigorosamente sabia e faria. Mas, a piscina associada a um fracasso anterior, a uma dor excruciante, a uma punição terrível… o fez temer! O medo, normal e habitual, dentro de proporções que o faria ser atento e diligente, foi associado a uma parte dele incapaz e desprovida de coragem… quando nossa coragem é afastada de um enfrentamento… o medo se agiganta… e a paralisia acontece justo quando se precisa de movimento. Ao relembrar seu tombo provocado por um medo tolo, a personagem Kwai retoma a coragem… desmascara o isolamento que o medo causa de seu recurso natural… O riso do mestre é o riso