Amar distraidamente

por Clarice Lispector

POR NÃO ESTAREM DISTRAÍDOS

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. 

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. 

Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. 

Como eles admiravam estarem juntos! 

Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. 

Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. 

Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.  No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. 

Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. 

Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. 

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, 

e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. 

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

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REFERÊNCIA:

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo: crônicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 508. 

COMENTÁRIO:

A linguagem poética tem a maravilhosa capacidade de prescindir de explicações. Gostamos ou não gostamos do poema. Entretanto, a análise psicológica que vamos empreender desse poema, por aqui, neste comentário, tentará “explicar” como a arte pode ter um efeito terapêutico. Por tanto, mais do que querer atribuir significações ou explicar a inexplicável maestria de Clarice Lispector – porque isso seria impossível e desoportuno -, o que vamos apontar é para o EFEITO psicológico da arte poética sobre quem a lê. Coloquemos o sujeito psicológico sobre o qual vamos falar BEM pertinho… ao nosso lado: somos nós mesmos!! Isso… primeiro leia… depois volte ao texto e repare:

1) para começar com o que humor você veio até esse site… buscou algum texto… achou que havia chegado o momento  e leu?

2) para tomar a decisão de iniciar a leitura quais foram as CONJECTURAS sobre as quais disse “sim”mentalmente? Algumas dessas: a) é pequeno? b) tenho tempo? c) não vou me machucar recordando nada o que não quero? d) será que vou aprender algo sobre distração? e) possivelmente tem palavras bonitas sobre amor se está aqui classificado como leitura para problemas amorosos. f) distração e amor, deve haver uma conexão nisso que vale ler…? Se você disse “sim” a alguns desses questionamentos você poderá concordar comigo que iniciou PENSANDO sobre a poesia… sobre seu autor ou local onde a encontra e, talvez, assosciações que já tenha com tudo isso.

3) será que alguém no mundo consegue chegar completamente inocente para ler uma poesia e usufruir mais de perto do que o autor realmente disse? Ou será que ler poesia é trazer a MINHA experiência para conversar, pela LEITURA, com as palavras colocadas em tal ordem poética que possam significar o que o autor quis… ou então o que não quis… mas sugeriu… ou então o que o autor permite que seu leitor recrie de sentido, ao ler o que escreveu?

4) quando terminou de ler o título qul o PRIMEIRO e os outros pensamentos que se sucederam? Ou então… você conseguiu SILENCIAR e ler sem interferir com seus pensamentos sobre o que sua mente ainda decifrava significar?

5) “havia”… “andavam”…  a poesia segue diáfana… traz um elemento de suspensão… conta algo muito fluído num tempo solto… ou retrata, como uma câmera de celular num telefone em modo SILENCIOSO, sem que o casal perceba, o que estão vivendo ou sentindo?

6) era sobre um casal, não era?

7) “como eles admiravam estarem juntos” você conseguiria passar por essa frase sem fazer uma inferência? uma suposição? um questionamento? uma recordação? sem emitir uma opinião sobre se isso é bom ou ruim para quem está junto? Você conseguiu não ler e antecipar o que viria nas frases abaixo?

8) você se lembra de algum “deserto da espera” na sua vida?

9) como a distração, nesse texto, consegue ser sinônimo de ATENÇÃO SINCERA ou de VALOR INTRÍNSECO? será que estamos nesse exato momento distraídos o suficiente para darmos uma atenção sincera, cheia de valor intrínseco, sem duvidarmos ou engaiolarmos aquilo que amamos… por medo de perder… por posse… por insegurança… por solidão?

10) quando o ponto final chegou você sentiu, lá no fundo, “até que enfim”…? suspirou? constinuou mentalmente em imagens e imagens das distrações que viveu?

Depois de reparar na sua própria mente e coração lendo e traduzindo esse texto sobre a distração (dos outros… afinal não foi você que escreveu, certo?) podemos aprender mais sobre o efeito psicológico das obras de arte! Nos tornamos co-autores do texto, dos significados atribuíveis ao mesmo e das repercussões psicológicas da nova energia dos novos pensamentos, bem como da velha energia dos velhos pensamentos.

Repensar e rever: eis a mágica experiência linguística e psicológica da “distração” de Clarice! Vale a pena se distrair, assim.